São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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OPINIÃO

A cirurgia da próstata

AFIZ SADÍ

As pesquisas médicas, biomédicas, físico-químicas, engenharia genética, biologia molecular e outras mais evoluíram nesses últimos 30 anos em centros especializados de outros países. Sim, porque, entre nós, pouca pesquisa existe; nossos pesquisadores são exportados ou exilados por falta de apoio funcional e para a própria subsistência.
Já nos referimos anteriormente à pletora de faculdades de medicina e de seu lançamento anual de 10.000 mil profissionais, quando a demanda é de 4.000. O ideal será 1 médico para cada 1.300 habitantes. Então de 60% a 70% dos formandos não encontram trabalho digno; não conseguem residência médica; pós-graduação e honorário decente. Os seguros-saúde os absorvem em massa com ridícula remuneração, assim como faz o SUS, e cujo atendimento outrossim desenobrece o profissional. Assim sofrem o paciente, o médico, os meios de atendimento e, com isso, as universidades vão se deteriorando.
A propósito da urologia, que é o nosso setor, ela também se beneficiou bastante com as pesquisas das últimas décadas: a endoscopia evoluiu para o tratamento de um sem número de patologias uretrais, vesicais, ureterais e piélicas com aparelhos ultramodernos: ultra-sons, laser, vaporizações, crioscopias e (cirúrgicas), fluoroscopias avançadas, tomografias helicoidais, ressonâncias magnéticas e vários outros. Embrionária ainda, a laparoscopia veio e deverá substituir uma série grande de métodos cirúrgicos e permanecerá por longo tempo. Na urologia, ela irá constituir um novo ramo que substituirá muitas cirurgias, hoje consideradas impraticáveis do ponto de vista cruento.
Veja-se que, desde 1982 até esta data, as máquinas vêm substituindo as cirurgias dos cálculos urinários em mais de 90% dos casos: praticamente não mais se opera o cálculo urinário. Ainda restam algumas cirurgias substitutivas de órgãos que, em breve, darão lugar a outras técnicas ou aparelhos substitutos.
Assim o câncer da próstata teve uma evolução curiosa nos últimos 50 anos; era operado tão logo fosse diagnosticado e com sua evolução longa em relação ao diagnóstico, já se encontrava avançado e mesmo com metastases.
A cirurgia era precária e o pós-operatório curto quanto à sobrevida e de péssima qualidade. Medicamentos auxiliares surgiram, cirurgias evoluíram, marcadores tumorais auxiliaram até certo ponto o diagnóstico com margem de erro de 30% falso negativos ou falso positivos, mas o toque retal permaneceu incólume. As indicações cirúrgicas diminuíram por um tempo até 1908 quando recrudesceram nos Estados Unidos e com grande entusiasmo no Brasil.
Com o avanço das pesquisas, medicamentos hormonais, radioterapia avançada, braquiterapia renascida, criocirurgia neo surgida endoscópica, a cirurgia radical para o câncer da próstata tende a desaparecer totalmente.
Esses processos cirúrgicos prostáticos não são pesquisa pura, apenas um estudo detalhado comparativo anatomo-histo-fisiológico. Como um trabalho mecânico, a tendência é desaparecer com o evolver do tempo, a natureza e a própria biologia do tumor. Sobrarão os métodos terapêuticos acima enunciados e não cruentos que, em última análise, são muito mais benéficos que os cirúrgicos: fornecem os mesmos resultados de longevidade e a qualidade de vida é muito melhor em todos os sentidos quando comparada aos possíveis comprometimentos pós-operatórios.
Outrossim evita-se a disseminação de células tumorais para outros setores da atividade humana, sempre preocupação durante as manipulações cirúrgicas do tumor. Ora, o câncer das próstata é de propagação centrípeta e, por isso, há quase sempre extravasamento capsular e propagação apical. Os entendidos e bem intencionados só por isso deveriam impedir a cirurgia, pois pode haver recidiva tumoral e então a coisa se complica. Esse tumor não deve ser manipulado porque tende a disseminação sistêmica; por isso pesquisadores italianos dizem a seu respeito: "Noli me tangeri".
Hoje, na Europa, face às pesquisas sobre o câncer da próstata, praticamente a cirurgia inexiste. Nos Estados Unidos, onde a euforia foi grande nesses 20 anos com propagação para o nosso meio, a cirurgia radical vem diminuindo abruptamente, como frota eufórica há tempos. Frente às mesmas pesquisas que indicam terapêuticas variadas para o câncer da próstata, tudo faz crer que a cirurgia radical é inútil e em nada ultrapassa os benefícios das pesquisas referidas. Como velho professor de urologia e com pesquisas sobre as células tumorais e o seu percurso no sistema sanguíneo até atingir os ossos, venho prescrevendo a cirurgia radical do câncer da próstata há cerca de 40 anos.
Agora vejo que meus esforços estão sendo coroados porque os grandes centros europeus já aboliram a cirurgia e os americanos reduziram-na, por ora, para apenas 30% dos casos bem selecionados. Assim como aconteceu para os cálculos, também o câncer da próstata, em breve, não terá mais indicação cirúrgica.
Para o lado renal, lembro-me de transplantes de rins de chimpanzé para o homem, por volta de 1960/62, e talvez se possa utilizar rins de porcos com os avanços atuais dessas pesquisas. No setor genital, o crescimento científico tem sido tão grande que a própria urologia vem sendo desmembrada. Esse avanço vem se dando a nível da biologia molecular que será o equilíbrio e a resolução incruente de quase todas as patologias urogenitais. Essas pesquisas não terão fim; servirão de rastilho e explodirão, e, como uma malha, envolverão todos os setores da atividade orgânica do ser humano.
Lamentavelmente, não há no Brasil pesquisa pura em urologia; muitos dos trabalhos surgidos são frágeis quanto sua aplicação ou veracidade. Há muita cópia e repetição. Entretanto, no cômputo geral universitário e científico e, com a experiência adquirida nesses dois quartéis de século no exercício do ensaio e das atividades profissionais urológicas, acredito e sinto que os processos cruentos tendem a desaparecer muito em breve no concerto da urologia universal.
Para encerrar, creio que se enquadraria aqui o pensamento de Marquês de Maricá: "Os mundos e sistemas solares concebidos na Divina Mente e realizados pela Onipotência do Ser Supremo têm, como as sementes vegetais e os ovos animais, um desenvolvimento lento, progressivo e variado, até chegarem, por muitos e inumeráveis milênios, aquele grau de madureza e plenitude, em que se dissolvendo se resolvem nas substâncias elementares de que foram formados e que servirão de materiais para novas formações, futuros mundos e sistemas solares".



Prof. AFIZ SADÍ, titular de urologia da Escola Paulista de Medicina emérito da Sociedade Brasileira de Urologia; emérito da Academia de Medicina de São Paulo; honorário da Academia Nacional de Medicina e honorário da Academia de Medicina de Minas Gerais.


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