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GILBERTO DIMENSTEIN
Já vencemos
Em 2002, uma pessoa era levada, em média, todos os
dias para um cativeiro em São
Paulo; a maioria dos casos ocorria na capital. No primeiro semestre deste ano, segundo dados oficiais que obtive na sexta-feira, a
média baixou para um caso por
semana, uma queda de 70%.
Mesmo com a expressiva queda,
ainda se está longe dos níveis de
1998 e 1999, quando se registrava
um seqüestro por mês -o que,
aliás, já era ruim. Esses dados não
permitem a ninguém sentir-se
tranqüilo: cresceu o número dos
chamados seqüestros relâmpagos,
sem cativeiro, mas fazendo as vítimas reféns por algumas horas.
O fato, entretanto, é que, desde
2002, a incidência de seqüestros
com cativeiro têm caído ano após
ano. Essa notícia -boa, mas
muito distante do suficiente-
mostra que, independentemente
do resultado, seja "sim" ou "não",
o país sai ganhando com o referendo.
Afinal, qual é a relação entre o
referendo e a queda do número
de seqüestros? É a mesma explicação para uma espécie de ""milagre" paulistano: em oito meses,
ocorreu um único homicídio no
Jardim Ângela, distrito apontado
em 2000 como a região mais violenta do mundo.
O que de fato importa vai muito
além do "sim" e do "não". Relevante é a mobilização provocada
pelo referendo -esse movimento,
inédito no Brasil, mudou o patamar do debate sobre as causas da
violência e como enfrentá-la.
Na mobilização que vem da inconformidade é onde as viradas
têm alguma chance de nascer. Isso significa que o tema da violência irá atordoar cada vez mais os
governantes e forçá-los a apresentar planos com um mínimo de
consistência para promover a segurança nas ruas.
Voltemos ao exemplo dos seqüestros, que perderam força porque a gritaria foi generalizada,
forte, exigindo ações concretas da
polícia. Note-se que berrou mais
alto justamente quem podia berrar mais alto -a elite. A polícia
se preparou melhor para enfrentar os seqüestradores e, ao mesmo
tempo, criaram-se projetos bancados pela sociedade e apoiados
pelos meios de comunicação.
Um desses projetos é uma linha
direta telefônica, lançada pelo
Instituto São Paulo contra a Violência, para denunciar seqüestros; os meios de comunicação
ajudaram a popularizar esse número. Um grupo recebe as denúncias, que são enviadas para a polícia e, depois, acompanha o processo. Além disso, repetiram-se
insistentemente dicas para a população sobre como identificar
cativeiros.
Traduzindo em números: desde
2002 até o semestre passado, 828
seqüestradores foram presos. Repetindo o óbvio dos óbvios: o que
inibe o candidato a criminoso é a
desconfiança de que vai ser punido.
A mais importante experiência
de segurança pública brasileira
está na região metropolitana de
São Paulo, onde, em quatro anos,
a taxa de homicídios caiu 40%.
Parte dessa evolução se deve à
mobilização comunitária que,
entre outras coisas, acionou, desde o final da década de 90 -mais
precisamente em 1997- uma
campanha pelo desarmamento.
A campanha foi iniciada por estudantes de direito da Universidade de São Paulo e, daí, ganhou
forma o "Sou da Paz". A polícia se
sentiu ainda mais pressionada a
coletar armas.
Se olharmos friamente, não dá
para dizer até que ponto a retirada de armas de circulação implicou a redução da violência. Mas
dá para dizer tranqüilamente
que a mobilização gerou um clima mais favorável de combate à
barbárie.
Quando se analisam comunidades que enfrentaram e enfrentam a violência - Nova York,
Cali, Boston, Medelin, Diadema
Heliópolis ou Jardim Ângela-
vê-se que o primeiro passo foi a
indignação coletiva; da indignação partiu-se para a mobilização;
e, daí, para a aplicação de políticas públicas, combinando prevenção e repressão.
Se considerássemos esse referendo apenas pelos argumentos dos
partidários do "sim" e do "não",
ficaríamos frustrados. Seduzidos
pela simplificação eleitoral, os
dois lados se baseiam em premissas frágeis. Proibir armas é apenas um detalhe de um programa
para reduzir a violência. Garantir
a comercialização não significa
que o cidadão esteja mais protegido; está, inclusive, mais ameaçado de levar um tiro de um marginal, de perder a cabeça e matar
alguém ou de deixar o revólver
cair nas mãos do filho.
A questão óbvia é que, nessa disputa, ambos os lados buscam exatamente a mesmo objetivo: fazer
com que a sociedade seja mais segura. O referendo é uma marca
história de mobilização para que
esse objetivo suba ao topo da
agenda nacional.
Por isso, todos vencemos.
P.S. - Entre essas duas ilusões,
voto pelo "sim" por uma questão
quase de redução de dano: a proibição pode, quem sabe, ajudar
um pouco, por menos que seja,
além de enviar um sinal mais claro de inconformidade contra a
barbárie.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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