São Paulo, Segunda-feira, 20 de Dezembro de 1999


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COTIDIANO IMAGINÁRIO
Rachadura

MOACYR SCLIAR
"Ex-deputado é preso 22 meses depois do desabamento que matou oito no Rio." Cotidiano, 16.dez.99.
Finalmente saíram todos, os policiais, os advogados. A porta da cela fechou-se e ele ficou ali, sozinho. Olhou ao redor. Era um recinto esquálido, para dizer o mínimo: seis metros quadrados, uma única cama, nada de móveis. Lembrou-se de uma festa que tinha dado em seu apartamento em Miami; na ocasião, aborrecera-se com as taças de cristal em que lhe fora servido o champanhe, taças que considerara "coisa de pobre". "Miséria, miséria", fora seu irritado, e debochado, comentário. Suprema ironia: em verdade antecipara seu próprio destino. Miséria, miséria.
Deitou-se no catre, adormeceu -e sonhou.
Sonhou que no teto da cela onde estava surgia uma rachadura. Uma rachadura de forma estranha, intrigante. Como intrigantes haviam sido os sinais traçados na parede do palácio do rei Baltazar, e que o profeta Daniel interpretara.
E enquanto ele a olhava, tentando descobrir o que significava aquilo, a rachadura começou a se ampliar. Logo, pedaços de concreto estavam caindo sobre sua cabeça. Pôs-se a gritar -está desabando, está desabando-, mas ninguém aparecia. Por mais que esmurrasse a porta, por mais que berrasse, ninguém aparecia. Como se os guardas tivessem sumido.
E aí se deu conta. No sonho, deu-se conta. Os guardas tinham realmente sumido. Porque aquilo, aquela cela, não passava de uma armadilha. O teto tinha sido preparado para desabar. Era o castigo reservado para ele. Seria submetido ao mesmo tormento experimentado pelos moradores do Palace 2, o prédio por ele construído e que havia desabado, matando oito pessoas.
Acordou suando, apavorado. E aí se deu conta: fora apenas um pesadelo. O teto não tinha desabado. Não havia vingança nenhuma preparada contra ele. Tudo produto de sua imaginação, perturbada pelos últimos acontecimentos.
Mas a rachadura -a rachadura estava ali, no teto. Como um enigmático e ameaçador sinal de alguma coisa que ele não entendia bem e que, provavelmente, nunca entenderia, mas que o perseguiria para sempre.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.


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