|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
COTIDIANO IMAGINÁRIO
Rachadura
MOACYR SCLIAR
"Ex-deputado é preso 22 meses
depois do desabamento que matou oito no Rio." Cotidiano,
16.dez.99.
Finalmente saíram todos, os
policiais, os advogados. A porta da cela fechou-se e ele ficou
ali, sozinho. Olhou ao redor.
Era um recinto esquálido, para
dizer o mínimo: seis metros
quadrados, uma única cama,
nada de móveis. Lembrou-se
de uma festa que tinha dado
em seu apartamento em Miami; na ocasião, aborrecera-se
com as taças de cristal em que
lhe fora servido o champanhe,
taças que considerara "coisa de
pobre". "Miséria, miséria", fora seu irritado, e debochado,
comentário. Suprema ironia:
em verdade antecipara seu
próprio destino. Miséria, miséria.
Deitou-se no catre, adormeceu -e sonhou.
Sonhou que no teto da cela
onde estava surgia uma rachadura. Uma rachadura de forma estranha, intrigante. Como
intrigantes haviam sido os sinais traçados na parede do palácio do rei Baltazar, e que o
profeta Daniel interpretara.
E enquanto ele a olhava, tentando descobrir o que significava aquilo, a rachadura começou a se ampliar. Logo, pedaços de concreto estavam
caindo sobre sua cabeça. Pôs-se
a gritar -está desabando, está
desabando-, mas ninguém
aparecia. Por mais que esmurrasse a porta, por mais que berrasse, ninguém aparecia. Como se os guardas tivessem sumido.
E aí se deu conta. No sonho,
deu-se conta. Os guardas tinham realmente sumido. Porque aquilo, aquela cela, não
passava de uma armadilha. O
teto tinha sido preparado para
desabar. Era o castigo reservado para ele. Seria submetido ao
mesmo tormento experimentado pelos moradores do Palace
2, o prédio por ele construído e
que havia desabado, matando
oito pessoas.
Acordou suando, apavorado.
E aí se deu conta: fora apenas
um pesadelo. O teto não tinha
desabado. Não havia vingança
nenhuma preparada contra
ele. Tudo produto de sua imaginação, perturbada pelos últimos acontecimentos.
Mas a rachadura -a rachadura estava ali, no teto. Como
um enigmático e ameaçador
sinal de alguma coisa que ele
não entendia bem e que, provavelmente, nunca entenderia,
mas que o perseguiria para
sempre.
O escritor Moacyr Scliar escreve nesta
coluna, às segundas-feiras, um texto de
ficção baseado em notícias publicadas no
jornal.
Texto Anterior: Escola nova às vezes ajuda Próximo Texto: Livros Jurídicos Índice
|