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CULTURA CONCRETA
Acervo do poeta, com mais de 30 mil volumes, será levado para a Casa das Rosas, na avenida Paulista
Livros de Haroldo de Campos ficam em SP
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
A bibliocasa vai acabar. Bibliocasa era a forma como Haroldo de
Campos (1929-2003) chamava o
sobrado em que morava em Perdizes (zona oeste de São Paulo). O
neologismo tinha uma razão simples: os livros tinham tomado a
casa. A bibliocasa vai acabar porque os mais de 30 mil volumes da
biblioteca do poeta, tradutor e ensaísta serão doados pela família à
Secretaria Estadual de Cultura.
O acervo será conservado na
Casa das Rosas, na avenida Paulista, que passa a ter um segundo
nome: Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, de
acordo com a secretária estadual
de Cultura, Claudia Costin.
José Luiz Goldfarb, que coordena na secretaria o projeto "São
Paulo - Um Espaço para Leitores", obteve o "OK" da família depois de quase um ano de negociações -as conversas começaram
em novembro do ano passado.
Para se ter uma idéia da importância do acervo, a Universidade
Yale, uma das mais influentes dos
Estados Unidos, manifestou interesse em comprar os livros. A família do poeta, porém, queria e
fez com que a biblioteca permanecesse em São Paulo.
"O meu sonho é abrir o espaço
em janeiro do próximo ano, mas
não posso prometer", diz Costin.
A Casa das Rosas está fechada
desde abril do ano passado. A tentativa de uma parceria da secretaria com o Instituto Takano, da
gráfica homônima, fracassou. No
final, uma reforma de R$ 200 mil
foi bancada pelo governo.
Segundo o acordo negociado
entre a secretaria e a família do
poeta, o acervo será para consulta.
O plano da secretaria é transformar o local num espaço de pesquisa literária.
O material para pesquisa na biblioteca da Haroldo é único no
mundo. Ele traduziu (ou transcriou, como gostava de dizer)
obras do inglês, do francês, do espanhol, do alemão, do italiano, do
russo, do hebraico, do chinês e do
japonês. Ao ver a tradução de alguns cantos da "Divina Comédia", nos quais Haroldo trabalhara pouco antes de morrer, o escritor italiano Umberto Eco avaliou
que ele era o "mais importante
tradutor moderno de Dante".
Labirinto de Borges
A tradução de Dante é reveladora do método de trabalho de Haroldo e de sua biblioteca. Para verter a "Divina Comédia", ele trabalhava com as várias traduções para outras línguas nas mãos, segundo João Alexandre Barbosa,
professor aposentado de literatura da USP.
"O que mais me impressionava
na biblioteca era a edição crítica
dos clássicos. Ele tinha as melhores edições de Dante", conta Barbosa. Tinha também os melhores
dicionários de todas as línguas pelas quais transitava, segundo ele.
Trajano Vieira, professor de
grego da Unicamp (Universidade
Estadual de Campinas), credita a
diversidade da biblioteca à "curiosidade intelectual ilimitada" de
Haroldo. "Não consigo imaginar
outra imagem que não seja a do
labirinto de Borges para descrever
a biblioteca. Ao caminhar por ela,
você entra no labirinto da cultura
universal", diz Vieira.
Ele conheceu de perto o jeito de
Haroldo traduzir ao colaborar na
tradução da "Ilíada", de Homero,
feita pelo poeta. A obsessão por
traduções míticas levou Haroldo
e Vieira a comprarem num sebo
na Austrália a versão para o espanhol da "Ilíada" feita pelo helenista espanhol José Gómez Hermosilla (1771-1837/38). A tradução de
Hermosilla ganhou essa aura porque era a predileta do poeta Lautréamont, autor de "Cantos de
Maldoror". Ele também gostava
da tradução para o alemão da
"Ilíada" feita por Johann Heinrich
Voss (1751-1826) e da versão em
inglês de Robert Browning (1812-1889) -ambos poetas.
Os interesses de Haroldo eram
tão ciclópicos que sua biblioteca
tem gramáticas de egípcio e de
nahuatl, a língua falada pelos astecas. "Nos últimos anos ele traduziu hinos ritualísticos dos astecas", diz Vieira.
Carmen Arruda de Campos,
viúva de Haroldo, conta que a biblioteca tem edições com dedicatórias de Umberto Eco, de Octavio Paz, de Cabrera Infante, de
Jacques Derrida e de de Julio Cortázar (que transformou o amigo
em personagem de "Um tal Lucas", de 1979). "Desde 1959 viajávamos para a Europa e para os Estados Unidos e tínhamos esses
amigos nesses lugares", diz Carmen. Muitos dos livros têm anotações de Haroldo nas margens.
Nelson Ascher, poeta e colunista da Folha, diz que Haroldo tinha
uma das melhores bibliotecas de
poesia que já viu. Ela abrange desde primeiras edições autografadas de Octavio Paz e João Cabral
de Melo Neto até pequenas revistas literárias de todas as partes do
mundo. As edições autografadas,
segundo Ascher, eram usadas no
trabalho, não recebiam tratamento especial: "Haroldo era um antifetichista do livro, não prezava o
livro como objeto raro/caro".
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