São Paulo, segunda-feira, 16 de dezembro de 2002

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MOACYR SCLIAR

Fumando espero aquela a quem mais quero

 Para europeus, é mais fácil ficar sem sexo do que sem cigarros. Uma pesquisa mostrou que cerca de 80% dos fumantes britânicos e quase 70% dos holandeses, franceses e alemães prefeririam deixar o sexo de lado por um mês a viver sem cigarros.
Ciência Online, 9.dez.2002

Deitado ao lado da namorada, no apartamento dela, ele suspirou satisfeito. Tinham feito amor -uma grande relação- e agora só faltava uma coisa para deixá-lo completamente feliz: um cigarro. Estendeu a mão, apanhou o maço na mesinha de cabeceira, mas teve uma decepção: estava vazio. Com um suspiro, levantou-se e começou a se vestir.
- Onde é que você vai? -estranhou a moça.
- Comprar cigarros, disse ele. - O meu maço terminou.
- Mas são 2h da madrugada! -protestou ela. - Você não pode deixar isso para a manhã?
- Não posso. - Ele sorriu. - Você sabe, eu sou como muitos europeus: completamente dependente do cigarro. Posso ficar sem qualquer coisa, mas não posso ficar sem fumar.
- Não acho graça, disse ela, seca. - Que você fume ou não, pouco me importa. Mas que você me deixe para ir comprar cigarros é uma coisa que não posso suportar. Você vai ter de escolher: os cigarros ou eu.
Ele não respondeu. Terminou de se vestir, sorriu de novo -estava acostumado com aquelas briguinhas - e saiu. Pensava que logo retornaria, mas isso não aconteceu: teve de caminhar um bom pedaço até encontrar um lugar que vendia sua marca predileta. E aí, fumando, voltou para o apartamento. Abriu a porta -tinha a chave- e ficou surpreso ao ouvir risinhos debochados. Entrou no quarto, e lá estava ela, sua namorada, com um rapaz. Os dois nus. E, pelo jeito, tinham acabado de fazer amor.
- Quero apresentar a você o meu vizinho, o Quico, disse ela, bem-humorada. - Ele tem inúmeras qualidades: é carinhoso, gentil, faz as minhas vontades. Ah, sim: não fuma. O que, como você sabe, é muito importante.
Ele não disse nada. Apanhou o resto de suas coisas, um porta-retratos com sua própria foto e saiu sem se despedir. O caso estava, obviamente, terminado.
No corredor do prédio, não pôde conter um soluço. Afinal de contas, ele amava a moça. Nunca imaginaria que terminariam por um motivo tão estúpido. Tirou o maço de cigarros do bolso: essa coisa ainda vai me matar, pensou. Ainda vou parar no hospital com enfisema ou com um câncer de pulmão.
E aí sorriu de novo. E se, no hospital, ele encontrasse uma bela enfermeirinha, meiga, carinhosa, a mulher de sua vida? E se os dois se apaixonassem perdidamente? Enfisema ou não, câncer ou não, estaria vingado. A outra que ficasse com seu abstêmio. Ele seria feliz para sempre.
Acendeu o cigarro, deu uma longa tragada. E aí tossiu um pouco. Normal: acontece com todos os fumantes, mesmo os mais experientes, mesmo aqueles que, fumando, esperam pela mulher de suas vidas.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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