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MOACYR SCLIAR
Sonho de lesma
Ela nasceu lesma, vivia no
meio de lesmas, mas não estava satisfeita com sua condição.
Não passamos de criaturas desprezadas, queixava-se. Só somos
conhecidas por nossa lentidão. O
rastro que deixaremos na História será tão desprezível quanto a
gosma que marca nossa passagem pelos pavimentos.
A esta frustração correspondia
um sonho: a lesma queria ser como aquele parente distante, o escargot. O simples nome já a deixava fascinada: um termo francês, elegante, sofisticado, um termo que as pessoas pronunciavam
com respeito e até com admiração. Mas, lembravam as outras
lesmas, os escargots são comidos,
enquanto nós pelo menos temos
chance de sobreviver. Este argumento não convencia a insatisfeita lesma, ao contrário: preferiria
exatamente terminar sua vida
desta maneira, numa mesa de
toalha adamascada, entre talheres de prata e cálices de cristal. Assim como o mar é o único túmulo
digno de um almirante batavo,
respondia, a travessa de porcelana é a única lápide digna dos
meus sonhos.
Assim pensando, resolveu sacrificar a vida por seu ideal. Para isso, traçou um plano: tinha de dar
um jeito de acabar em uma cozinha refinada. O que não seria tão
difícil. Perto dali havia uma horta
onde eram cultivadas alfaces: belas e selecionadas alfaces, de folhas muito crespas. Alfaces destinadas a gourmets, sem dúvida.
Uma dessas alfaces, raciocinou a
lesma, me levará ao destino que
almejo. Foi até a horta, à doida
velocidade de meio quilômetro
por hora, e ocultou-se no vegetal.
Que, de fato, foi colhido naquele
mesmo dia e levado para ser consumido.
Infelizmente, porém, a alface
não fazia parte de um prato francês, mas sim de um popular e globalizado lanche. Quando a consumidora foi comê-lo constatou,
horrorizada, a presença da lesma.
Chamado, o gerente a princípio
negou a evidência: disse que aquilo era um vestígio de óleo queimado. O que deixou a lesma indignada: eu não sou óleo queimado, bradava, eu sou uma criatura,
e uma criatura com um sonho,
respeitem meu sonho ou será que,
para vocês, nada mais é sagrado,
só o direito do consumidor?
Ninguém a ouviu, claro. Foi ignominiosamente jogada no lixo,
junto com suas ilusões de grandeza. E assim descobriu que, quem
nasceu para lesma nunca chega a
escargot, mesmo viajando de carona em certas alfaces, principalmente viajando de carona em
certas alfaces.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de
ficção baseado em matérias publicadas
no jornal.
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