São Paulo, segunda-feira, 05 de dezembro de 2005

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MOACYR SCLIAR

Anjos fumantes

Mulher tenta abrir porta de avião durante vôo para fumar. Uma francesa admitiu em um tribunal da Austrália ter tentado abrir a porta de um avião em pleno vôo para fumar um cigarro do lado de fora. A mulher de 34 anos, que tem medo de voar de avião, havia bebido álcool e tomado remédio para dormir antes do vôo entre Hong Kong e Brisbane, na Austrália. Foi vista andando em direção à porta do avião da Cathay Pacific com um cigarro e um isqueiro na mão. Começou a tentar abrir a saída de emergência quando foi impedida por uma aeromoça. Folha Online, 21 de novembro de 2005  
Ao juiz ela contou que era fumante há muito tempo, desde criança. E fumante contumaz, dessas que não podem ficar sem cigarro mais de uma hora ou duas, sob pena de se sentirem mal. Principalmente num vôo -se havia coisa da qual tinha medo, era viajar de avião. Mas fumar em aeronaves não é permitido. Como resolver o problema?
Optou por dormir, com a esperança de que, ao acordar, já tivesse chegado ao destino -e aí a primeira coisa que faria era acender o seu cigarro. De fato, chegou a conciliar o sono, mas duas horas depois acordou, trêmula, com uma vontade irresistível de fumar. Olhou ao redor: todo mundo dormindo. E se acendesse disfarçadamente um cigarro? Movida por um impulso incontrolável, sacou o maço do bolso. Nesse momento, e sem querer, espiou pela janela. E aí viu aquela cena incrível.
A noite estava belíssima. Céu claro, com poucas e redondas nuvens. Numa delas, iluminada pela lua esplêndida, estavam sentados quatro anjos. Ela arregalou os olhos. Anjos? Sim, eram anjos. Não anjinhos rechonchudos, querubins; não, anjos adultos, dois deles com barba. Vestiam alvas túnicas, calçavam sandálias. E os quatro estavam fumando.
Ah, que inveja ela sentiu. Os quatro fumando, sem nenhum problema. Mais: os quatro abanando-lhe amistosamente. Num impulso, ela mostrou-lhes o maço de cigarros e o isqueiro, como que a dizer: eu aqui também posso fumar. Mas então um dos anjos ergueu um cartaz que dizia: "De acordo com a disposição das autoridades, o fumo é proibido em aeronaves". Com o que ela se deu conta: eles só podiam fumar porque estavam ao ar livre, porque não estavam transformando pessoa alguma em fumante passivo. Que inveja dos quatro anjos. Que inveja. Foi tamanha a inveja que ela, num impulso, levantou-se e dirigiu-se à saída de emergência situada ali perto. Era uma coisa complicada de abrir, aquela porta, mas ela já estava quase conseguindo quando foi impedida pela aeromoça. Que, nervosa, lhe perguntou o que estava fazendo.
Vou dar uma saidinha para fumar com os anjos, ela ia dizer, mas, nesse momento, espiando pela janela, viu que não havia anjo algum sobre a nuvem. Deu-se conta de que ninguém acreditaria em sua história. Anjos aparecendo para uma passageira? Na classe econômica? Ninguém acreditaria.


Moacyr Scliar escreve às segundas, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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