São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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Ciência em Dia

Embriões desarmados

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Leia sem muito susto nem desgosto, porque não se falará aqui de referendo, desarmamento etc., mas sim da boa e velha biotecnologia. Os tecnocientistas manipuladores da vida aplicaram um xeque-mate, na semana que passou, aos adversários da pesquisa com células-tronco embrionárias. Com duas façanhas de laboratório, desarmaram a principal objeção ética a tais estudos.
Células-tronco embrionárias (CTEs) são a mais nova promessa de panacéia biotecnológica para as dores, moléstias e agruras da humanidade. Como guardam a capacidade de gerar qualquer tecido do corpo, podem em princípio ser aplicadas para tratar e curar toda condição que envolva perda de células sadias, de traumas da medula espinhal a infartos do miocárdio. (Em princípio, porque cumprir tais promessas são outros 500.)


Os tecnocientistas aplicaram um xeque-mate aos adversários da pesquisa com células-tronco embrionárias


Sua obtenção dependia até agora, porém, da destruição de embriões. Produzido por fertilização in vitro (fora do corpo), o ovo ou zigoto é cultivado até o estágio de blastocisto, em que tem cerca de cem células e a forma de uma esfera. No interior dessa "bolinha de células", como preferem dizer alguns pesquisadores, fica a massa celular da qual se extraem as células-tronco que originam as linhagens para pesquisas de terapias. A extração das CTEs destrói o embrião.
Melhor dizendo, destruía. De um só golpe editorial, o periódico científico "Nature" publicou eletronicamente domingo passado dois estudos que tentam derrubar com as artes da tecnologia obstáculos erguidos por considerações éticas ou morais. Para quem é assinante da publicação britânica, os artigos podem ser encontrados na página www.nature.com/nature/journal/
vaop/ncurrent/index.html
.
O primeiro deles partiu da empresa americana Advanced Cell Technology (ACT). O grupo de Robert Lanza produziu linhagens de CTEs sem destruir embriões de camundongos. Usou uma técnica similar à empregada em clínicas de fertilização para verificar a qualidade genética de embriões para implantação, uma espécie de biópsia. Retira-se uma única célula do embrião quando ele tem só oito delas, uma fase anterior de desenvolvimento em que é chamado de blastômero, e as sete restantes ainda permanecem capazes de originar um organismo completo.
A célula retirada pode então ser usada para diagnóstico genético (identificação de variantes deletérias de genes), para seleção dos embriões que serão introduzidos no útero. Ou então, a partir de agora, com o estudo da ACT, para iniciar linhagens de células-tronco.
O outro estudo foi realizado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA). Rudolph Jaenisch empregou estratégia diversa: para não destruir um embrião, fisicamente, destruiu sua condição de embrião. Fez isso manipulando um gene (Cdx2) de uma célula adulta que, ao ser fundida com um óvulo sem núcleo, começou a se multiplicar como um embrião anormal, incapaz de se fixar na parede de um útero. Ou seja, um não-embrião.
Em resumo: duas admiráveis novas realizações da biotecnologia.

Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro "O DNA" (Publifolha) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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