São Paulo, domingo, 10 de abril de 2005

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Ciência em Dia

A boa morte de João Paulo 2�

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Não fosse este espaço dedicado à ciência e áreas adjacentes, como vida e ambiente, a vontade era de escrever sobre essa constrangedora campanha para "eleger" um papa brasileiro. Diante dela, até ateus se sentem tentados a exclamar: Meu Deus! Já não basta o sentimento de inferioridade por não ter Prêmio Nobel e Oscar, em breve o país poderá também sentir-se menor, possivelmente, por não abocanhar o Vaticano.


Caberia aos homens intervir para tirar de seu curso um processo com desenlace fixado pelo desígnio divino (ou natural)?


É diante da morte de João Paulo 2�, porém, que cabe parar e pensar. De sua vida já se disse tudo e mais um pouco, quando não o seu contrário. Da morte do papa também muito se falou, e uma das reflexões mais interessantes foi proposta quarta-feira na Folha pelo filósofo Denis Lerrer Rosenfield, do qual em geral tem sido mais fácil discordar. Tensionando um pouco seu argumento, seria possível dizer que, ao escolher morrer em seus aposentos, longe da tecnologia hospitalar, o papa terminou oferecendo um manifesto em favor da eutanásia.
Rosenfield escreve que a palavra não é apropriada para o passamento de João Paulo 2�, porque ele se deixou morrer. Ela está associada com a idéia de fazer morrer, como praticava o "Dr. Morte", Jack Kevorkian, condenado a pelo menos dez anos de prisão, em 1999, por participar de suicídios. Se fosse essa a noção predominante de eutanásia, ministrar uma dose letal de drogas para desencadear a morte de alguém, certamente a do papa nada teria a ver com isso.
Não é essa a eutanásia que está na ordem do dia, porém. Não se trata de Jack Kevorkian, mas de Terri Schiavo. Nos casos do papa e de Terri, era possível escolher entre realizar ou não intervenções para prolongar uma vida que, por seus próprios recursos, se extinguiria lentamente. A diferença estaria em que, supõe-se, João Paulo 2� tomou a decisão sobre si mesmo, ou dela participou, enquanto sobre Terri quem decidiu foi o marido.
Obviamente, trata-se de uma diferença enorme. É muito menos questionável, eticamente, uma pessoa decidir sobre a própria morte. Mas, e quando ela não pode fazê-lo, por que seria menos humano, ou menos piedoso, permitir que um ente querido tome a decisão por ela?
No caso Schiavo, conservadores e fundamentalistas cristãos cerraram fileiras em torno dos pais da moça, que queriam prolongar seu estado vegetativo. O argumento por trás da intransigência era que, assim como não competiria a seres humanos interromper a vida de um embrião (uma "pessoa humana", na óptica "pro-life"), tampouco seria permissível interromper a de um moribundo, por mais insustentável que fosse.
Outra forma de encarar a questão, paradoxalmente oposta mas não menos conservadora, é a sugerida no artigo de Rosenfield: caberia aos homens intervir com meios técnicos para tirar de seu curso um processo com desenlace fixado pelo desígnio divino (ou natural)? Quem responder que não, justificando com isso o direito de João Paulo 2� a uma morte piedosa, não deveria escandalizar-se tanto com o direito exercido por Michael Schiavo em nome de Terri.

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