São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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ELIO GASPARI

Bala em lavrador é alerta. Ovo em ministro é o caos


O governo está embriagado pela mistificação e pelo radicalismo verbal. Tomem-se dois exemplos, a intransigência de FFHH com os servidores públicos, verbalizada pelo ministro do Planejamento, Martus Tavares, e a reação do Planalto ao ovo amassado no ministro José Serra.
Os funcionários estão pedindo 62% de reposição salarial. Talvez façam negócio por 6,2%. O que está em jogo não é o percentual de um reajuste, mas a decisão do governo de não aceitar conversar com uma classe que vem massacrando há cinco anos.
O ministro disse que a folha do funcionalismo chegou a R$ 53,6 bilhões neste ano. Portanto um reajuste de 2% significará uma despesa equivalente ao que se gasta com a merenda escolar.
Tudo bem. Já que o negócio é brincar com estatísticas, os grevistas lembram que neste ano o governo desembolsará R$ 65 bilhões para pagar os juros de sua dívida. Gastará esse ervanário porque fixou e mantém os juros brasileiros no patamar mais alto do mundo. O ministro Tavares nunca foi ouvido reclamando de que os juros custam 61 vezes o que se se gasta com a merenda escolar. Com uma diferença: a choldra que paga impostos prefere dar de comer às crianças do que banquetear banqueiros.
O Planalto conversa com ruralistas caloteiros, privatas quebrados e banqueiros falidos, mas não vai à mesa com os servidores. Age assim porque está jogando numa estratégia de tensão.
O melhor exemplo dessa estratégia foi verbalizado pelo secretário-geral da Presidência, Aloysio Nunes Ferreira, e pela liderança parlamentar do PSDB. Eles se enfureceram porque um estudante desempregado amassou um ovo no ministro da Saúde e um manifestante bateu com um pau de bandeira no governador Mário Covas. Nunes Ferreira disse o seguinte:
- Essas ações partiram de uma canalha de ânimo fascista, porras-loucas, membros de grupelhos extremistas. É um banditismo político.
Pegou pesado. As leis do país têm remédios para delitos desse tipo e, no caso do ovo, dificilmente podem levar a uma pena maior que a perda da primariedade por cinco anos. Se é pouco, pode-se fazer outra lei, mas essa é a que há.
Será que um ovo vale tantos adjetivos?
O ministro José Serra era presidente da UNE em 1964. A escumalha que ele representava fazia coisa pior, muito pior. Cinquentões, todos esses baderneiros lembram-se com ternura de suas malfeitorias (cometidas num regime democrático). Da mesma forma, FFHH se lembra com carinho da baderna francesa de 1968, à qual assistiu, enlevado. Isso para não mencionar as doces recordações que os senadores Antonio Carlos Magalhães e José Sarney guardam das pancadas que tomaram da polícia do ditador Getúlio Vargas. (Sarney, no exercício da Presidência, teve o ônibus apedrejado no Rio de Janeiro. Manteve a solenidade do cargo, não disse uma palavra e, meses depois, anistiou os agressores.)
O ministro Nunes Ferreira chama de bandidos, canalhas, fascistas e porras-loucas extremistas aos baderneiros de hoje. É forte. Lutando contra a ditadura (tendo como objetivo a instalação no Brasil de um regime socialista), ele militou na Aliança Libertadora Nacional, de Carlos Marighela. Essa organização praticava aquilo que seu líder chamava de "terrorismo revolucionário". Como quadro destacado da ALN, em agosto de 1968, o atual ministro participou do assalto a um trem pagador da ferrovia Santos-Jundiaí, do qual levaram o equivalente a US$ 21,6 mil. Bandido não era. Canalha, muito menos. Fascista, nem pensar. Porra-louca, talvez. Extremista, com certeza. Se ele não era tudo isso, como é que um jovem que amassa um ovo pode vir a sê-lo?
O governo, tão fiel aos costumes do FMI, deveria copiar também os seus modos sociais. Na cerimônia de sua despedida da direção geral do Fundo, Michel Camdessus tomou uma torta no rosto. Se desse queixa, o agressor tomaria cadeia, pois as leis americanas são mais severas que as brasileiras. Camdessus não deu queixa. Pelo contrário, deu lição: "Risco profissional, que aceito com alegria de viver".
Como o oveiro é petista registrado, o deputado Aécio Neves quer que o PT o condene. Não o fazendo, seria cúmplice da ovada. Divertido, o doutor Aécio. Nunca pediu ao PFL (partido que participa da aliança governista) que condenasse o deputado Hildebrando Paschoal. Ele é um homem de fino trato. Não amassava ovo, serrava gente viva. O PFL, que gosta tanto da ordem, só o expulsou depois que as fotografias das vítimas da motosserra de seu deputado circularam no Congresso.
Pode-se encarcerar os baderneiros. O que não se pode é jogar o governo no oportunismo da histeria.
Admita-se que o certo seja mandar para o Carandiru todos aqueles que ofendem as autoridades, desrespeitam a tropa de choque e gritam palavrões para FFHH (que não reclamou quando 200 mil pessoas referiram-se à mãe do presidente João Figueiredo no comício do Anhangabaú, em 1984.) Nesse caso, consegue-se finalmente restabelecer a ordem. Que ordem?
Aquela que levou um professor da Sorbonne a governar em aliança com o deputado Hildebrando Paschoal.
O senador Vitorino Freire dizia que em política se pode fazer tudo, menos balançar o coreto das autoridades. Pode-se serrar miseráveis no Acre, mas não se pode amassar um ovo num ministro. A PM paranaense pode matar um lavrador (a tiro de carabina), e o Planalto pode dizer que isso deve ser tomado como um alerta. O que não se pode é balançar o coreto, porque essa é a ordem que ele mantém.


Uma festa: Patativa, Rodolfo, Caboclo , Zé Vicente e Cuíca


Está nas livrarias uma pequena preciosidade. É a coleção "Cordel", com cinco livrinhos muito bem acabados. Cada um com uma seleta da poesia de grandes trovadores do norte: Patativa do Assaré, Rodolfo Coelho Cavalcante, Cuíca de Santo Amaro, Manoel Caboclo e Zé Vicente. É um tipo de literatura pela qual todo mundo tem muita simpatia, alguma vontade de ler e pouca paciência para chegar ao fim dos versos de um folheto. Ao mesmo tempo, o cordel é uma das mais expressivas manifestações da cultura popular de Pindorama.
Cada livro inclui uma breve biografia do seu poeta. Lendo-os, aprende-se que os trovadores eram perseguidos pela polícia e que Rodolfo Coelho Cavalcante chegou a cantar livremente nas feiras nordestinas guardando no bolso uma autorização do governador baiano Otávio Mangabeira. Eles faziam a poesia, imprimiam os folhetos e os vendiam nas ruas. Quase todos tinham um pé na demagogia (menos Patativa). Cuíca de Santo Amaro, de fraque e chapéu coco, tinha um pé na extorsão.
Alguns poemas são datados, mas também proféticos, como esse de Rodolfo Cavalcante, feito dois dias depois da deposição de Getúlio Vargas, em 1945:
"Pode o porco ser granfino,
Pode o pato não nadar,
Pode o leão ser mofino,
Pode o gato não miar,
A galinha criar dente,
Gente virar serpente,
Mas Getúlio vai voltar!"
Outros falam pela alma da gente do sertão, como "O Casamento no Céu", de Manoel Caboclo:
"Tudo passa neste mundo
No palco da ilusão:
A vida é um barco cansado,
O tempo um rei em ação,
O homem um ser perseguido
Cumprindo a lei da razão."
Dos cinco, o mais conhecido (e talvez o melhor) é Patativa do Assaré. Esse monumento da cultura popular brasileira vive num sítio, na serra de Santana, no interior do Ceará. Está com 91 anos, ouve pouco, vê quase nada e anda com dificuldade. Seu volume inclui a doce "História de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa".
É quase certo que Patativa foi o criador das expressões "Brasil de Cima" e "Brasil de Baixo", talvez nos anos 60. Esses versos, que não estão no livrinho, dizem assim:
"Tudo o que procuro acho.
Eu pude ver neste clima,
Que tem o Brasil de Baixo
E tem o Brasil de Cima.
Brasil de Baixo, coitado!
É um pobre abandonado;
O de Cima tem cartaz,
Um do outro é bem diferente:
Brasil de cima é pra frente,
Brasil de Baixo é pra trás."


ENTREVISTA

Paul Singer

(68 anos, professor da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo, autor do livro "Para Entender o Mundo Financeiro")


- Faz tempo que o senhor adverte para a crescente vulnerabilidade da economia brasileira. Agora o Banco Central diz que não baixou os juros por conta da tensão internacional. Essa explicação faz sentido?
- O Banco Central não podia baixar a taxa de juros. Nossa taxa real é de 11% ao ano. Levando-se em conta os fatores de risco, ela está perigosamente próxima da americana, de 6,5% ao ano. Estamos sob a ameaça de uma nova crise. Em 1997 e 1998 ela chegou a partir de desordens ocorridas na periferia do mercado financeiro. Uma na Ásia, outra na Rússia. Agora, ela pode vir do centro, da Bolsa de Nova York. A alta dos juros americanos está incentivando uma política de usura que poderá levar a um pânico dos investidores. Se isso acontecer, não será o fim do mundo, mas será uma tremenda emergência. Lastimavelmente, a nossa vulnerabilidade aumentou, sem que tenhamos feito qualquer coisa que devesse levar a isso.
- Não é a falta das reformas?
- Não. Essa vulnerabilidade recente não tem nada a ver conosco. Nós não fizemos nada de novo, nem certo nem errado. Estamos cumprindo, com folga, as metas de superávits primários acertadas com o FMI, e os papéis da dívida externa caíram a um nível próximo àquele em que estiveram no início da crise russa. Os capitais estrangeiros estão saindo da Bolsa. Nós não temos nada a ver com isso. Nem nós nem os países emergentes. Ficamos vulneráveis simplesmente porque há um esforço de desaceleração da economia americana. Como ficamos ao sabor das entradas e saídas de capitais, vivemos uma situação irracional. Como é que um exportador pode fechar seus negócios se o câmbio está a R$ 1,60 por dólar num mês e no outro vai a R$ 1,90? É uma situação perigosamente parecida com a do México em 1994, quando a alta dos juros americanos provocou uma fuga de capitais aparentemente inesperada.
- O que o governo poderia ter feito para evitar essa situação?
- Deveria ter uma política econômica que estabelecesse metas buscando alguma autonomia financeira. A primeira, de crescimento. Em seguida, deveria ter uma idéia de quanto a economia brasileira precisa, em termos de capitais externos, para crescer algo como 5%. Iríamos buscar apenas os capitais estritamente necessários. A dependência dos capitais voláteis nos faz de vítima nas duas pontas. Quando eles estão felizes com o Brasil, correm para cá. Com isso, valorizam o real. Se ele baixa a R$ 1,60 por dólar, compromete as exportações. Quando os capitais estão infelizes, vão-se embora, e o dólar encosta nos R$ 2. É uma oscilação deletéria. Precisamos de uma taxa cambial mais segura. Em termos mais claros: é necessário haver um controle do câmbio.


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