São Paulo, domingo, 28 de maio de 2000


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NO PLANALTO

Governo é droga, vicia e mata

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O governo deflagrou uma virulenta cruzada contra o fumo. A face mais visível da campanha são mensagens publicitárias veiculadas na TV. Elas são dirigidas especialmente aos jovens. Utilizou-se linguagem dura.
"Caucau do pó, pra você como seria a propaganda de drogas pesadas?", indaga, na pele de repórter, o personagem de um dos filmetes.
"Bom", responde, rosto encapuzado, o outro personagem, traficante de drogas, "a propaganda poderia ter um monte de gente bonita, lugares exóticos, só a moçada sarada. Pessoas praticando esporte, pra dar a impressão de que a droga não vicia..."
E o repórter: "Qualquer semelhança com a propaganda de cigarro não é mera coincidência. O cigarro é droga, vicia e mata".
À frente do esforço governamental para tentar dobrar a espinha da indústria do fumo no Brasil, o ministro José Serra (Saúde) também aboliu o eufemismo de seus pronunciamentos sobre o tema. Ele costuma se referir aos fabricantes de cigarro como "a indústria do sofrimento e da morte".
Fustigada nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, onde vem sendo condenada a pagar indenizações milionárias, a turma do tabaco tenta recuperar terreno aumentando as vendas nos países pobres. O esforço do governo brasileiro seria, assim, correto, corretíssimo. Seria...
O diabo é a falta de coerência. A mão que apedreja é a mesma que afaga, eis o que se deseja realçar.
Serra talvez não saiba (poucos sabem), mas ao mesmo tempo em que promove o linchamento público do cigarro, nivelando-o à cocaína, o governo financia com dinheiro barato (juros anuais de 5,75%) a plantação de fumo no Sul do país. O dinheiro sai do Pronaf, o festejado programa oficial de estímulo à agricultura familiar.
Só em 99, Brasília liberou R$ 1,7 bilhão para financiar a chamada lavoura familiar, desenvolvida em pequenas propriedades. Desse total, cerca de R$ 1 bilhão foi para a região Sul, de onde sai praticamente todo o fumo usado na fabricação de cigarros no Brasil.
A administração antitabagista de FHC enterrou na plantação de fumo no ano passado algo como R$ 250 milhões. É dinheiro bastante para incluir no Orçamento da República, pelos próximos 55 anos, a repetição da campanha publicitária que Serra acaba de pôr na rua.
Argumenta-se na Esplanada dos Ministérios que o dinheiro da Viúva que vai para o fumo mantém uma legião de 400 mil pessoas ocupadas. Tolice. O que dá de comer a toda essa gente não é o Pronaf, mas a liquidez de suas lavouras. Se o governo cortar a verba amanhã, no dia seguinte a Souza Cruz e a Philip Morris estarão bancando, elas próprias, o custeio dos agricultores. No Brasil, costumam encalhar feijão e arroz. Fumo, jamais.
De resto, se o que deseja é manter gente ocupada, basta ao governo mudar de lado. Em vez de financiar o vício, a doença e a morte, pode reforçar o orçamento dos hospitais que ainda se dedicam ao tratamento do câncer, sempre tão oneroso.
 
Em tempo: o governo irá criar um banco de dados para tentar acompanhar melhor os gastos sociais. Da liberação à aplicação. Vai se chamar Ícone. Parte das informações será disponibilizada na Internet. Pretende-se melhorar o desempenho do Brasil no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, o incômodo IDH. Nada como um ano eleitoral para injetar criatividade na administração pública.


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