São Paulo, domingo, 10 de abril de 2005

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NO PLANALTO

O nome do problema do governo não é Romero Jucá

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Conservador na economia, Lula iniciou pela política o ciclo de mudanças que prometera em campanha. Opera-se agora uma revolução nos costumes políticos. Governos anteriores suavam para produzir os seus próprios escândalos. Lula incorpora à sua gestão, sem esforço, escândalos que já vêm prontos.
O problema da administração petista tem nome e sobrenome. Os auxiliares do presidente o chamam ora de Romero Jucá ora de Henrique Meirelles. Se estivessem certos, a solução seria simples. Bastariam dois golpes de esferográfica. Estão, porém, enganados.
Chama-se Luiz Inácio Lula da Silva o problema do governo. Ele chegou ao Planalto como solução dos milhões de brasileiros que o elegeram. Tornou-se problema no instante em que começou a subordinar o interesse público a uma causa que traz embutida um benefício particular: a reeleição.
A era de transformações políticas inaugurada por Lula modificou a paisagem enfeitada com os monumentos de Niemeyer. Há hoje em Brasília dois palácios do Planalto. Um deles espalha o boato de que eleição é assunto para 2006. O outro canaliza toda a articulação governamental para a costura do complô que tentará reeleger o presidente.
Mimetizando a ambigüidade que envenenou a trajetória política do antecessor, Lula conduz a própria biografia num passeio pelos cafundós do Brasil. FHC cavou o instituto da reelegibilidade em meio a uma atmosfera de barganhas conspurcada pela confissão dos deputados do Acre que levaram "200 mil" de uma certa "cota federal".
No afã de servir-se da regra nascida de um processo cuja legitimidade o ex-PT tanto questionou, Lula acomoda na Esplanada um senador de Roraima dono de notável ficha corrida. O recém-nomeado esforça-se em vão para explicar a renovação de um empréstimo em banco público mediante a garantia de fazendas fantasmas. Logo, terá de explicar outras coisas.
Ontem como hoje, a fome reeleitoral dos presidentes submete a administração pública a um banquete de cardápio sinistro. A refeição é reservada a convivas que se habituaram a enxergar o Estado como fonte de negócios e oportunidades.
À semelhança do que ocorreu com o sociólogo envernizado na Sorbonne, obscuros parlamentares da tribo dos peemedebês e dos pepês passam a enxergar o ex-sindicalista forjado nas lutas do ABC como "um dos nossos". Há outras semelhanças hediondas.
O garçom da refeição servida sob FHC foi Sérgio Motta. Antes da morte, o ex-superministro consolidou um legado de truculências a serviço dos interesses do chefe. Sua imagem está indelevelmente associada àquela "cota federal" tão festejada pelos deputados acreanos. A mesa patrocinada por Lula vem sendo caprichosamente posta por José Dirceu.
Dirceu não é senão um neo-Serjão. A barriga é menor, mas o apetite é igualmente exuberante. Entrou na política pela porta certa. Fez-se na luta contra a ditadura. Mas escolheu compor o papel de coveiro do próprio histórico.
O condestável de Lula soube com antecedência das complicações curriculares do senador roraimense. Mas preferiu dar de ombros. A conveniência da incorporação do PMDB à caravana reeleitoral prevaleceu sobre a compostura.
O onipresente chefão da Casa Civil chegou a tricotar outras nomeações tisnadas com as cores da vulgaridade. Avalizou, por exemplo, a candidatura ministerial de um temerário aliado de Severino Cavalcanti. A nação foi salva na última hora, graças ao extemporâneo ultimato do faminto presidente da Câmara.
A volúpia aliancista do ex-PT produz estremecimentos de alcova. O empresário José Alencar, cônjuge de Lula na chapa eleita em 2002, começa a sentir o cheiro de adultério que impregna o ar palaciano. Sente avizinhar-se o momento em que será comunicado de que a vaga de vice em 2006 não será dele, mas do PMDB.
Observador atento, FHC esboça, desde o seu retiro na rua Rio de Janeiro, na elegante Higienópolis, um plano de reação. Escorando suas análises na experiência pessoal, o ex-presidente recomenda aos aliados uma reação vigorosa. Acha que, ao expandir o seu leque de alianças políticas às raias do infinito, Lula torna-se praticamente imbatível nas eleições do ano que vem.
A resposta do PSDB é, porém, inibida pelas marcas de um passado que renasce nas páginas de sentenças judiciais do presente. Como pode o tucanato atacar os negócios suspeitos de Henrique Meirelles se o ex-presidente do Banco Central, Francisco Lopes, acaba de ser condenado a dez anos de prisão por conta do providencial socorro ao banco Marka de Salvatore Cacciola?
Com que autoridade um partido que confiou os negócios da $udam a apadrinhados de Jáder Barbalho pode agora alvejar o peemedebista Romero Jucá, afilhado de Renan Calheiros?
Como podem os tucanos espicaçar a incoerência dos acertos de Lula com Orestes Quércia, se o próprio FHC, candidato à reeleição, posou ao lado de Paulo Maluf, postulante ao governo paulista, num memorável outdoor exposto nas esquinas de São Paulo? Na oposição, o PSDB é prisioneiro do próprio impudor.
E a sociedade brasileira, por ora indefesa, é órfã da perturbadora rotina que transforma paladinos da reforma dos hábitos políticos em servos de alianças fundadas em esquemas tão perturbadores quanto inaceitáveis.
Lula ainda poderia salvar o verbete que a enciclopédia reserva ao seu governo. Bastaria que fizesse aprovar no Congresso uma emenda constitucional que sepultasse o funesto estatuto da reeleição. Como isso não irá acontecer, resta ao (e)leitor a convivência com o aviltante espetáculo da degenerescência política.


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