São Paulo, domingo, 10 de abril de 2005

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JANIO DE FREITAS

João e João

João Paulo 2� já é história. Mas história ainda por ser estudada. Nem mesmo o mais notório dos seus atributos, a capacidade de atrair e siderar multidões, está ainda compreendido nas suas perturbadoras contradições.
Movimentos de massa espontâneos existem nas interpretações de historiadores, são uma referência conceitual em certas obras sobre psicologia social, mas não existem na realidade. Todos resultam de alguma indução, menos ou mais explícita, deliberada ou não, explosivamente repentina ou vagarosamente cumulativa. O pontificado de João Paulo 2� inscreve-se nessa relação de causa e efeito.
A face externa do pontificado de João Paulo 2� consistiu, sobretudo, em incessante sobreposição de gestos e palavras que o envolviam em uma aura, cada vez maior, de simpatia humana e de simbolismos universais.
Mesmo o inesperado, o que jamais poderia ser atos por ele estudados, engrandeceu a sua aura com elementos de comoção acima de indiferenças religiosas ou outras. O atentado, por exemplo. O papa atingido por um tiro covarde, quando se oferecia ao convívio direto dos fiéis, situou-o no centro de um abalo comovente em todo o mundo. As expectativas de sua problemática recuperação e logo a retomada do seu périplo continentes afora, com a bem visível luta para impor seu propósito missionário à fragilidade do convalescente, injetaram comoção diretamente nos corações oferecidos à TV.
Depois, quase sem intervalo, o início da doença, o mal de Parkinson. Dia a dia, a progressão da doença e do sofrimento testemunhados publicamente. A voz se perdendo, o corpo curvando-se sobre si mesmo, a cabeça pendendo mais para o lado a cada nova aparição, a benção como penosa exigência ao braço e à mão: o papa imolou-se aos olhos do mundo. E a Cúria do Vaticano não poupou sua contribuição para o fenômeno multitudinário que envolveu a agonia e morte de João Paulo 2�.
Mas a progressiva redução dos fiéis católicos e o continuado esvaziamento dos seminários ao longo do pontificado de João Paulo 2�, constatados em estudos da própria Igreja Católica, assinalam outro e mais curioso fenômeno: a adesão das multidões concentrou-se na pessoa. João Paulo 2� não pôde transferir à sua Igreja aquilo que soube angariar. Uma contradição que se explica, provavelmente, em parte pela teologia praticada por João Paulo 2�, mas que, para o restante, depende de uma compreensão mais larga e mais densa, mais propriamente humana. A compreensão, pelo menos, de que as religiões não existem no divino, mas no humano.
Qual é a mensagem nova deixada por João Paulo 2�? Que idéia nova fará João Paulo 2� lembrado? Por certo, ficam imagens, lembranças físicas, doces umas, outras comoventes. Sobre todas, as imagens de um homem sofrendo as suas dores, como milhões de outros em cada minuto da Terra - mas anônimos, a maioria deles esquecida.
João 23, essa é a diferença, fez avançar a humanidade. Seu pequeno pontificado, de apenas cinco anos, transpôs mais de mil. Transformou anátemas em comunhões. Divisões transformaram-se em ecumenismo, preconceitos em tolerância. João Paulo 2� recebeu os olhares do mundo. João 23 atraiu o olhar da humanidade para a Igreja - mas foi há quase 40 anos, e 40 anos nunca pareceram tão distantes.


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