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JANIO DE FREITAS
João e João
João Paulo 2� já é história.
Mas história ainda por ser estudada. Nem mesmo o mais notório dos seus atributos, a capacidade de atrair e siderar multidões, está ainda compreendido
nas suas perturbadoras contradições.
Movimentos de massa espontâneos existem nas interpretações de historiadores, são uma
referência conceitual em certas
obras sobre psicologia social,
mas não existem na realidade.
Todos resultam de alguma indução, menos ou mais explícita,
deliberada ou não, explosivamente repentina ou vagarosamente cumulativa. O pontificado de João Paulo 2� inscreve-se
nessa relação de causa e efeito.
A face externa do pontificado
de João Paulo 2� consistiu, sobretudo, em incessante sobreposição de gestos e palavras que o
envolviam em uma aura, cada
vez maior, de simpatia humana
e de simbolismos universais.
Mesmo o inesperado, o que jamais poderia ser atos por ele estudados, engrandeceu a sua aura com elementos de comoção
acima de indiferenças religiosas
ou outras. O atentado, por
exemplo. O papa atingido por
um tiro covarde, quando se oferecia ao convívio direto dos fiéis,
situou-o no centro de um abalo
comovente em todo o mundo.
As expectativas de sua problemática recuperação e logo a retomada do seu périplo continentes afora, com a bem visível luta
para impor seu propósito missionário à fragilidade do convalescente, injetaram comoção diretamente nos corações oferecidos à TV.
Depois, quase sem intervalo, o
início da doença, o mal de Parkinson. Dia a dia, a progressão
da doença e do sofrimento testemunhados publicamente. A voz
se perdendo, o corpo curvando-se sobre si mesmo, a cabeça pendendo mais para o lado a cada
nova aparição, a benção como
penosa exigência ao braço e à
mão: o papa imolou-se aos olhos
do mundo. E a Cúria do Vaticano não poupou sua contribuição
para o fenômeno multitudinário que envolveu a agonia e
morte de João Paulo 2�.
Mas a progressiva redução dos
fiéis católicos e o continuado esvaziamento dos seminários ao
longo do pontificado de João
Paulo 2�, constatados em estudos da própria Igreja Católica,
assinalam outro e mais curioso
fenômeno: a adesão das multidões concentrou-se na pessoa.
João Paulo 2� não pôde transferir à sua Igreja aquilo que soube
angariar. Uma contradição que
se explica, provavelmente, em
parte pela teologia praticada
por João Paulo 2�, mas que, para
o restante, depende de uma
compreensão mais larga e mais
densa, mais propriamente humana. A compreensão, pelo menos, de que as religiões não existem no divino, mas no humano.
Qual é a mensagem nova deixada por João Paulo 2�? Que
idéia nova fará João Paulo 2�
lembrado? Por certo, ficam imagens, lembranças físicas, doces
umas, outras comoventes. Sobre
todas, as imagens de um homem
sofrendo as suas dores, como milhões de outros em cada minuto
da Terra - mas anônimos, a
maioria deles esquecida.
João 23, essa é a diferença, fez
avançar a humanidade. Seu pequeno pontificado, de apenas
cinco anos, transpôs mais de
mil. Transformou anátemas em
comunhões. Divisões transformaram-se em ecumenismo, preconceitos em tolerância. João
Paulo 2� recebeu os olhares do
mundo. João 23 atraiu o olhar
da humanidade para a Igreja
- mas foi há quase 40 anos, e
40 anos nunca pareceram tão
distantes.
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