São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


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ARTIGOS
Descoberto assassinato de John Kennedy

SILVIO DWORECKI
especial para a Folha

John Kennedy assassinado por Alzira Pastore. Anos de pistas falsas, dúvidas e suspeitas. Agora, somente agora, a assassina confessa. Alzira era criança quando mandou matá-lo. Apaixonada, sabia dele pela revista "Manchete". Isso e muito mais pode-se saber nas falas, benditas, de Bete Coelho em "Pai", aula de direção teatral de Paulo Autran, texto pop de Cristina Mutarelli e cenário japonês de Daniela Thomas. Pop, sim...mas por que pop?
A autora do espetáculo tem um hábito: faz colagens todas as noites. São Paulo já viu a qualidade de seus trabalhos em artes plásticas. Assiste-se ao espetáculo imaginando. Ou seja, criando imagens no pensamento. A autora é atriz. Das artes também faz as plásticas. Seu texto é construído com figuras a suceder-se.
É bom lembrar o que se diz das crianças. Quando exercem uma linguagem artística, provavelmente exercerão outra. Uma puxa a outra. Mas se abandonam uma linguagem, logo abandonarão as outras.
Quando abandonadas, abandonam. O mesmo se dá com adultos, adolescentes, idosos. Diante desse exercício simultâneo de Cristina Mutarelli como atriz, artista plástica e agora autora, uma leitura possível de seu texto talvez seja através do foco das artes plásticas. Retomando então: por que pop, o Pai?
Tanto os vitrais medievais quanto as pinturas da época traziam personagens com tamanhos hierarquizados de acordo com sua importância em relação à ordem celeste. Pai, Mãe, Divino Espírito e Filho sempre grandes.
O povo em escala diminuta. Os lugares claramente efêmeros. Falsos como cenários de papelão. Presépios. É no Renascimento, com as leis da perspectiva, que as figuras começam a ganhar tamanho, de acordo com a posição que ocupam no espaço. Na Idade Média, a igreja hierarquiza. No Renascimento, o olhar. Na infância... o afeto.
Partes do texto do espetáculo são da personagem Alzira quando criança. Para ela, Kennedy é grande. Ela pequena, Kennedy grande, o pai enorme, poderoso... Quase como se supõe ser para toda criança.
Mutarelli, adulta, redesenha estas imagens e as traz para o palco. O verbo no presente. Pensa-se mais em colagem, como as que a autora faz à noite.
Ícones e totens da paisagem gráfica e urbana da América nos 60. Isso de pintura com imagens à imagem e semelhança ao que de fato são, é coisa do Renascimento. Ao se citar as leis da perspectiva, já se enunciava o desejo da fotografia. Ou de Hollywood.
Alzira, quando criança, colhe suas fantasias na revista "Manchete". Decide matar o então presidente americano baseada nesta mesma fonte. Mutarelli cita os sinais que permitem identificar e localizar a personagem. Mais que isto. Mostram a coleção de imagens do folclore urbano da alta classe média paulistana da metade deste século 20. Baile na ilha Porchat, apartamento em Higienópolis e outro no Guarujá...
Esta coleção é exposta pelo texto ao público como citações, imagens coladas, elogios da cultura daquele momento.
Quando as emoções ameaçam avolumar-se, surge um substantivo. Surge um jogo trocadilhesco, de palavras. Estes recursos enclausuram a possibilidade de pranto. Engole-se em seco.
Velho grande e seu cão diminuto, é narrativa que aparentemente nada tem a ver com o todo. Por isso, talvez, é o momento que mais elucida.
O segundo já nem se vê. É história em quadrinhos, comics. Como também é comics a luz que emoldura a atriz e sua bolsa.
De colagem em colagem, segue o gosto em ação no teatro. O fim do texto se explica e trai sua natureza. Abandona a vocação pop de fragmentos agrupados.
Em cena, o branco ritmado de gavetas. Quase reais. Papel branco de desenho japonês. Ali, o tempo não tem antes nem depois. Só vale o durante. O tanto que dura uma fala. Um gesto. Local próprio para um espetáculo que se desenrola ao longo do tempo, como qualquer espetáculo, ganhar a condensação do que pode ser aprendido em frações de segundo. Colagem, pintura. Daniela Thomas ofereceu o lugar onde o pop viceja.
Poucas vezes a atriz é emoldurada pelo negro. Vive num quadrado de luz. Betty Boop? Louise Brooks? Bete Coelho!! Sem largar a bolsa, o espetáculo vai em direção à sua maior vocação. Pop.
Ingmar Bergman diz que dirige cinema, teatro, com o fim único de entrar em contato com a platéia. O talento cultivado de Bete Coelho faz o mesmo: ninguém dos presentes a qualquer de suas apresentações sai ileso. Fato raro nestes tempos de clones e enxurradas. Esta é uma atriz de teatro sem vícios do naturalismo novelesco. Sem falsas economias.
Ao contrário, exubera na sinceridade cultivada das intenções poéticas. Visíveis dos pés à cabeça e dos tons ao brilho. Esta é a Bete Coelho antes de encontrar Paulo Autran. Performance em escala de praça. Desse encontro nasce a possibilidade de atuar no tamanho de estádios. Bom lembrar que os primeiros teatros, aqueles das encostas das montanhas, eram estádios.


Silvio Dworecki é artista plástico, cenógrafo, professor doutor pela FAU-USP e autor de "Camadas de Tempo" (Scipione) e "Em Busca do Traço Perdido" (Edusp/Scipione)


Peça: Pai Autora: Cristina Mutarelli Com: Bete Coelho Quando: sex. e sáb., 21h; dom., 20h Onde: teatro Clowne Plaza (r. Frei Caneca, 1.360, tel. 289-0985) Quanto: R$ 20 (R$ 10/Apetesp)

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