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TEATRO CRÍTICA
"Bonitinha" revê o moralista Nelson Rodrigues
NELSON DE SÁ
da Reportagem Local
Não é novidade -ele próprio
proclamava- que Nelson Rodrigues foi marcado por Dostoiévski, sobretudo por "Os Irmãos Karamázovi". Talvez em nenhuma
peça isso esteja tão claro quanto
em "Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária".
Como no romance, uma frase
vaza obsessivamente o texto, uma
frase do jornalista, amigo do dramaturgo, Otto Lara Resende: "O
mineiro só é solidário no câncer".
Ela é lançada logo de cara, como
uma piada, e volta corrosiva e
continuamente a rondar o protagonista, Edgard, em sua trajetória
de provação moral.
A frase de Dostoiévski reza que,
"se Deus não existe, tudo é permitido", iniciando o grande painel
da amoralidade, do vale-tudo de
pais e filhos Karamázovi. (Dostoiévski, vale dizer, pode ser notado em quase toda parte, em Nelson Rodrigues, como no nascimento de Boca de Ouro num banho, na peça também em cartaz,
que ecoa o nascimento de Smerdiakov em "Karamázovi".)
Voltando à frase "do Otto", o
que persegue Edgard é que, se o
jornalista está certo, se não existe
solidariedade humana, "tudo é
permitido" -como expressa o
próprio Nelson Rodrigues, na peça. Diz Edgard: "Para que pudores ou escrúpulos se o homem só
é solidário no câncer?".
Edgard tem seu caráter tentado
por um cheque de seu patrão,
Werneck, um devasso amoral como o pai dos Karamázovi, que
quer casá-lo com a filha -e, mais
do que isso, quer provar que o jovem é um mau-caráter como os
outros. Um cheque que Edgard
atravessa a peça sem coragem de
queimar, apesar de sua paixão
por outra mulher.
A encenação de Marco Antônio
Braz tem o grande mérito de fazer
da frase a sua protagonista, sem
perder seu fio moral nem com as
cenas chocantes de devassidão
que Nelson Rodrigues vai amontoando na peça -e sem perder a
comicidade do autor, pelo contrário. Para tanto, conta com dois
atores em ótimo momento para
os papéis de Edgard e Werneck, o
jovem Maurício Marques e o experiente Antônio Petrim.
O primeiro, que vem de outras
montagens bem-sucedidas de
textos rodrigueanos por Braz, alcança forte empatia no palco do
Arena, tão próximo da platéia,
chegando a alguma interação
-o que em nada interfere, negativamente, na composição de
personagem e ação. Ele salta com
segurança de um a outro dos
dois estados de Edgard: o que resiste à tentação da frase e o que a
abraça inteiramente. Leva com
ele o espectador, na mesma via
moral.
O segundo, Antônio Petrim,
não desperdiça o tanto que o autor oferece em seu titânico Werneck. Ele é dissoluto e autoritário, um monstro de egoísmo,
desrespeito, cinismo. Petrim,
que vem de atuar soberbamente
em "Barrela" no mesmo Arena,
mantém e até acrescenta rigor à
sua interpretação.
Também se destaca, no elenco,
Edimilson Cordeiro, que faz Peixoto, genro de Werneck que passou antes pelo mesmo processo
de aviltamento de Edgard. É o
mau-caráter consumado, resignado, mas que das entranhas de
sua humilhação levanta uma paixão pela outra filha de Werneck,
tão decaída quanto ele -uma
paixão mortal, que o autor, infelizmente, não aproveitou como
estopim para um final trágico
para toda a peça: "Bonitinha"
termina de modo frustrante.
No mais, o elenco tem altos e
baixos, com a qualidade maior
de manter a apresentação em nível aceitável do início ao fim. A
produção, por outro lado, é pobre e pouco imaginativa nos seus
recursos visuais, sobretudo nos
figurinos, que buscam localizar a
encenação nos anos 60.
A trilha, com velhos sucessos
de Roberto Carlos, resulta melhor do que se poderia esperar:
vai além da simples referência de
época, mantendo um contraste
entre o romantismo ingênuo das
canções e o cinismo imperante
na peça. Um cinismo, diga-se,
bem mais para a virada do século
do que para os anos 60.
Avaliação: ![](https://cdn.statically.io/img/www.uol.com.br/fsp/images/ep.gif)
Peça: Otto Lara Resende ou Bonitinha,
mas Ordinária
Elenco: Patrícia Gordo, Tatiana
Schunck, Carolina Autran e outros
Quando: qui. a sáb., às 21h; dom., às
20h
Onde: Teatro de Arena Eugênio Kusnet
(r. Teodoro Baima, 94, tel. 256-9463)
Quanto: R$ 16
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