São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2000


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TEATRO CRÍTICA
"Bonitinha" revê o moralista Nelson Rodrigues

NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

Não é novidade -ele próprio proclamava- que Nelson Rodrigues foi marcado por Dostoiévski, sobretudo por "Os Irmãos Karamázovi". Talvez em nenhuma peça isso esteja tão claro quanto em "Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária".
Como no romance, uma frase vaza obsessivamente o texto, uma frase do jornalista, amigo do dramaturgo, Otto Lara Resende: "O mineiro só é solidário no câncer". Ela é lançada logo de cara, como uma piada, e volta corrosiva e continuamente a rondar o protagonista, Edgard, em sua trajetória de provação moral.
A frase de Dostoiévski reza que, "se Deus não existe, tudo é permitido", iniciando o grande painel da amoralidade, do vale-tudo de pais e filhos Karamázovi. (Dostoiévski, vale dizer, pode ser notado em quase toda parte, em Nelson Rodrigues, como no nascimento de Boca de Ouro num banho, na peça também em cartaz, que ecoa o nascimento de Smerdiakov em "Karamázovi".)
Voltando à frase "do Otto", o que persegue Edgard é que, se o jornalista está certo, se não existe solidariedade humana, "tudo é permitido" -como expressa o próprio Nelson Rodrigues, na peça. Diz Edgard: "Para que pudores ou escrúpulos se o homem só é solidário no câncer?".
Edgard tem seu caráter tentado por um cheque de seu patrão, Werneck, um devasso amoral como o pai dos Karamázovi, que quer casá-lo com a filha -e, mais do que isso, quer provar que o jovem é um mau-caráter como os outros. Um cheque que Edgard atravessa a peça sem coragem de queimar, apesar de sua paixão por outra mulher.
A encenação de Marco Antônio Braz tem o grande mérito de fazer da frase a sua protagonista, sem perder seu fio moral nem com as cenas chocantes de devassidão que Nelson Rodrigues vai amontoando na peça -e sem perder a comicidade do autor, pelo contrário. Para tanto, conta com dois atores em ótimo momento para os papéis de Edgard e Werneck, o jovem Maurício Marques e o experiente Antônio Petrim.
O primeiro, que vem de outras montagens bem-sucedidas de textos rodrigueanos por Braz, alcança forte empatia no palco do Arena, tão próximo da platéia, chegando a alguma interação -o que em nada interfere, negativamente, na composição de personagem e ação. Ele salta com segurança de um a outro dos dois estados de Edgard: o que resiste à tentação da frase e o que a abraça inteiramente. Leva com ele o espectador, na mesma via moral.
O segundo, Antônio Petrim, não desperdiça o tanto que o autor oferece em seu titânico Werneck. Ele é dissoluto e autoritário, um monstro de egoísmo, desrespeito, cinismo. Petrim, que vem de atuar soberbamente em "Barrela" no mesmo Arena, mantém e até acrescenta rigor à sua interpretação.
Também se destaca, no elenco, Edimilson Cordeiro, que faz Peixoto, genro de Werneck que passou antes pelo mesmo processo de aviltamento de Edgard. É o mau-caráter consumado, resignado, mas que das entranhas de sua humilhação levanta uma paixão pela outra filha de Werneck, tão decaída quanto ele -uma paixão mortal, que o autor, infelizmente, não aproveitou como estopim para um final trágico para toda a peça: "Bonitinha" termina de modo frustrante.
No mais, o elenco tem altos e baixos, com a qualidade maior de manter a apresentação em nível aceitável do início ao fim. A produção, por outro lado, é pobre e pouco imaginativa nos seus recursos visuais, sobretudo nos figurinos, que buscam localizar a encenação nos anos 60.
A trilha, com velhos sucessos de Roberto Carlos, resulta melhor do que se poderia esperar: vai além da simples referência de época, mantendo um contraste entre o romantismo ingênuo das canções e o cinismo imperante na peça. Um cinismo, diga-se, bem mais para a virada do século do que para os anos 60.


Avaliação:    


Peça: Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária
Elenco: Patrícia Gordo, Tatiana Schunck, Carolina Autran e outros
Quando: qui. a sáb., às 21h; dom., às 20h
Onde: Teatro de Arena Eugênio Kusnet (r. Teodoro Baima, 94, tel. 256-9463)
Quanto: R$ 16


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