S�o Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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A vidinha de Saramago

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

� prov�vel que nem mesmo os maiores g�nios da humanidade tenham sido g�nios em tempo integral. Imagino que, no descanso entre um e outro acesso criativo, Michelangelo tivesse seus momentos de mediania, Shakespeare suas indisposi��es g�stricas, Bach seus desconfortos dom�sticos. Se nem todo homem � igual aos outros, somos provavelmente todos id�nticos durante 90% do tempo.
At� nos tra�os de personalidade, talvez sejamos mais parecidos do que pensamos. Claro, cada pessoa reage a seu modo diante da vida exterior. Mas uma pessoa sozinha, ronronando consigo mesma, tende a ser qualquer pessoa. Os para�sos, os purgat�rios e os infernos da intimidade, feitos de autocomplac�ncia, recrimina��o e d�vida, s�o como que um cen�rio indiferente e previs�vel de teatro, que qualquer um pode ocupar. Cada indiv�duo � sem d�vida uma caixa de surpresas, mas � necess�rio que algu�m a abra para que se perceba isso; l� dentro tudo � escuro.
Jos� Saramago � um escritor fora do comum, mas estes seus "Cadernos de Lanzarote", di�rios de 1993, 1994 e 1995, n�o t�m nada de fora de comum. Lanzarote � uma ilha do arquip�lago das Can�rias, onde o autor vive atualmente.
H� quem acuse Saramago de vaidoso por publicar esses di�rios. Ele mesmo diz que o livro haver� de ser visto como exerc�cio de narcisismo, "e n�o serei eu quem v� negar a parte de verdade que haja no sum�rio ju�zo, se o mesmo tenho pensado algumas vezes perante outros exemplos, ilustres esses, desta forma de comprazimento pr�prio que � o di�rio". Mas acrescenta: "Este Narciso que hoje se contempla na �gua desfar� amanh� com a sua pr�pria m�o a imagem que o contempla".
Mas haveria narcisismo se Saramago procurasse mostrar o tempo todo o quanto � poeta, o quanto � sens�vel, o quanto � bom, o quanto os outros s�o ruins. Ele n�o faz poses nesses di�rios. Nem mesmo faz pose de escritor. � apenas aquilo que cada pessoa acha de si mesma: um bom sujeito, que tem l� suas irrita��es, seus defeitos, mas vai levando sua vidinha, e diz, como Jorge Ben: "Posso n�o ser um band-leader, mas meus amigos, meus camaradinhas me respeitam". Saramago � t�o vaidoso quanto qualquer pessoa.
E t�o banal quanto qualquer pessoa. Um pouco mais, talvez, porque tem a rara felicidade de n�o reclamar de si mesmo, de n�o dar muita aten��o �s ang�stias de seu trabalho de escritor, de estar contente com a vida.
Em Lanzarote, para citar outra m�sica popular, uns dias chove, outros dias "fazem" sol. O comportamento dos cachorros da casa � analisado, sem grandes insights psicol�gicos, em v�rias p�ginas. Saramago resolve escalar uma montanha e acorda com dores musculares. O computador � um bicho estranho, mas o "Ensaio Sobre a Cegueira" vai sendo escrito.
Seria o caso de desejar um autor mais vaidoso, mais idiossincr�tico, mais neur�tico. "Ningu�m escreve um di�rio para dizer quem �", afirma Saramago; mas tampouco ele se decide a ser quem n�o �, a assumir um papel mais interessante, por exemplo, o papel do Grande Escritor, que ele at� �, quando n�o est� escrevendo seu di�rio.
Concluo mais algumas coisas dessas seiscentas e tantas p�ginas. A vida de um escritor famoso deve ser chat�ssima atualmente. Saramago tem de enfrentar entrevistas, viagens e mesas-redondas intermin�veis. As honrarias se sucedem. Manchester, Frankfurt, Santiago, Badajoz. Pr�mios e mais pr�mios. S� lhe resta o Nobel, e no ponto em que ele est�, n�o h� rem�dio: v�o sempre lhe perguntar sobre o assunto, e Saramago sempre vai ter de ficar atento � possibilidade de uma premia��o.
Encontros e contatos. Saramago tem �timas rela��es com Jorge Amado e Z�lia; fala de M�rcio de Souza e N�lida Pi�on. Mas o interc�mbio � mais forte entre portugueses e escritores de l�ngua espanhola. Jos� Donoso, Torrente Ballester ocupam p�ginas e p�ginas. Nunca vemos um perfil mais agudo, um tra�o descritivo, um esfor�o testemunhal mais claro no longo relat�rio das andan�as e jantares de Saramago. Tudo � minucioso e insosso. Falta malevol�ncia e falta entusiasmo.
O panorama se torna ainda mais opaco � medida que aparecem as birras com o ambiente pol�tico e liter�rio portugu�s, os afetos e/ou os desafetos do autor com o Emanuel F�lix, o Eduardo Prado Coelho, o Jos� Manuel Mendes, o Cavaco Silva.
Feliz e realizado na vida pessoal, Saramago se desespera com a pol�tica e os rumos do mundo. Chora ao ver na televis�o cenas da guerra na ex-Iugosl�via. Velho comunista, odeia os neoliberais: "Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o c�u, privatize-se a �gua e o ar... E, j� agora, privatize-se tamb�m a puta que os pariu a todos".
� na pol�tica que vemos, curiosamente, o lado mais pessoal destes di�rios. Saramago mant�m suas convic��es de esquerda, mas tamb�m revela -o que n�o � muito frequente- um profundo pessimismo quanto � esp�cie humana. Arrisco at� uma interpreta��o que pode valer para outros livros seus: o ate�smo de Saramago � de um desespero tal, que s� por muita for�a de vontade se concilia com o seu comunismo. Em vez de uma id�ia estar ligada � outra, como � cl�ssico em boa parte do pensamento de esquerda, haveria entre elas um conflito surdo, uma bipolaridade ao menos, movendo a obra deste escritor.
Simples hip�tese, em todo caso. Estes di�rios n�o encenam nenhum conflito, mostram um "eu" que de t�o homog�neo parece o tempo todo sem relevo. Resta a citar uma frase linda, escrita em julho de 93 e que Saramago repete no final do livro: "Que boas estrelas estar�o cobrindo os c�us de Lanzarote? A vida, esta vida que, inapelavelmente, p�tala a p�tala, vai desfolhando o tempo, parece, nestes dias, ter parado no bem-me-quer...". Am�m.

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