S�o Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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A paix�o do mestre Ung�

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por 30 anos, Bruna Bianco se negou a comentar seu relacionamento amoroso com o poeta italiano Giuseppe Ungaretti.
O excesso de zelo tinha como objetivo evitar qualquer tipo de vulgariza��o em torno da hist�ria que aproximou a jovem poeta de 26 anos do velho bardo de 78.
Para esta mulher culta, os interessados deveriam ler "Di�logo", livro publicado em 1968, nas comemora��es dos 80 anos do poeta. Composta por nove poemas de Ungaretti e cinco r�plicas de Bruna Bianco, a edi��o original era acompanhada de uma combust�o de Alberto Burri, artista pl�stico cujas obras foram expostas recentemente no Memorial da Am�rica Latina, em S�o Paulo.
Nesta entrevista � Folha, Bruna Bianco, nascida em 1940, em Piemonte, Cossano Belbo (It�lia), fala pela primeira vez de como conheceu Ungaretti em S�o Paulo, em 1966; fala das viagens que realizaram e da numerosa correspond�ncia in�dita que conserva consigo, na qual o poeta discorre longamente sobre diversos assuntos, entre eles, a obra de Picasso e de Vermeer.
A fala contida e s�bria desta advogada, que recebeu a Folha num bel�ssimo escrit�rio na avenida Brasil, n�o conseguiu evitar que a entrevista fosse interrompida algumas vezes pela emo��o. Entre inoc�ncia e mem�ria, confessou que o amor vivido ao lado de Ungaretti foi a "p�gina mais bonita" de sua vida. (Augusto Massi)
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Folha - Quantos anos a sra. tinha quando veio morar no Brasil?
Bruna Bianco - Tinha 16 anos. Minha m�e havia perdido um filho, meu irm�o menor, e o objetivo de nossa viagem era que ela pudesse esquecer esta perda. Meu pai, que era s�cio-diretor de uma multinacional na It�lia, providenciou nossa vinda para o Brasil. O plano inicial era passarmos aqui apenas um ano. Foi uma ruptura muito grande para mim.
Estudei no Col�gio Dante Alighieri e no terceiro m�s tirei a melhor nota em portugu�s. Sempre amei a l�ngua portuguesa. Embora pud�ssemos a qualquer momento retornar � It�lia, papai me inscreveu para o exame de direito, na PUC, onde me formei. Naquele tempo, o Brasil era um pa�s bonito e feliz. Papai sentiu que aquele era um bom momento e foi protelando o retorno definitivo. Quando chegou a hora de voltar, n�s o contestamos. O Brasil j� tinha penetrado em nossas entranhas.
Veio o per�odo da ditadura militar, e o Brasil n�o funcionou mais do ponto de vista human�stico. Penso que a tradi��o escravagista est� muito entranhada nas elites. Ainda hoje � um tra�o social muito marcante. Em 1972, casei com um italiano e, desiludida com a situa��o do pa�s, pensei algumas vezes em retornar � It�lia, no que fui questionada pelos meus tr�s filhos.
Folha - Quando e como a sra. conheceu Ungaretti?
Bianco - Eu o conheci em 1966, quando ele veio visitar o t�mulo do filho, Antonietto, no Cemit�rio S�o Paulo. Como toda jovem, numa �poca de grande emo��o, havia escrito umas poesias. Li no jornal que ele estava hospedado no hotel Ca'd'Oro, na rua Bas�lio da Gama. Eu me apresentei de forma t�mida com aquelas poesias. Ele me recebeu com extrema emo��o. Lembro que estavam com ele o Paulo Em�lio Salles Gomes, a Lygia Fagundes Telles, o Di Cavalcanti, o Fl�vio de Carvalho e a fam�lia do S�rgio Buarque de Holanda.
Depois ele foi ao Rio encontrar o Vinicius de Moraes. Pensei que nem se lembraria mais de mim. Por�m, dois ou tr�s dias mais tarde, no escrit�rio em que eu trabalhava, havia pelo menos uns dez recados de que Ungaretti queria falar comigo. Fui correndo ao hotel Ca'd'Oro. Ele me convidou para almo�ar. Disse que ao ler meus poemas achou-os bobos, mas ao reler encontrou express�es de criatividade que indicavam minha predisposi��o � poesia. E comentou que queria ser meu mestre.
Folha - Em que l�ngua voc�s conversavam?
Bianco - S� fal�vamos em italiano. Mas ele entendia perfeitamente o portugu�s. Tinha muito carinho pela l�ngua.
Folha - O que a sra. recorda desses primeiros encontros?
Bianco - A primeira vez que o encontrei, ele me entregou a bengala e disse: "Bruna, n�o preciso mais dela, voc� est� me dando a vida". Eu era jovem e como todo jovem n�o tinha grandes posses para convid�-lo a ir em muitos lugares. Ent�o, sa�amos para passear pela cidade, tomar ch� no Fasano, passear pelo Morumbi. Eu o vi solu�ar diante do t�mulo do filho. A emo��o de Ungaretti era algo incr�vel. Tenho cartas lind�ssimas dele falando de S�o Paulo.
Folha - Estas cartas foram escritas aqui?
Bianco - N�o, foram escritas quando retornou para a It�lia. Do navio, me escrevia praticamente todos os dias. Depois, quando chegou l�, me enviava livros e recomendava leituras. Havia um detalhe curioso: quando nos encontramos pela primeira vez, ele me presenteou com a caneta dele. E uma de suas exig�ncias era a de que eu escrevesse para ele sempre com esta caneta, cuja tinta era verde. S� usava canetas com tinta verde.
Eu tamb�m escrevia para ele quase todos os dias. O Bardi sempre me dizia que estas cartas n�o pertenciam s� a mim, elas deveriam ser publicadas, s�o um patrim�nio. Eu concordo. Mas, n�o queria que elas fossem mal interpretadas. Um de meus filhos est� digitando toda a correspond�ncia. Pretendo arranjar tempo e prepar�-la para uma futura publica��o.
Folha - Quando voc�s voltaram a se ver?
Bianco - Ung� arranjou uma desculpa e retornou ao Brasil em abril de 67. Veio para o meu anivers�rio. Ent�o fizemos uma viagem pelo Brasil. Fomos a Minas Gerais, onde visitamos Ouro Preto, Congonhas e Sabar�. Para n�o cans�-lo, a cada manh� sa�amos para visitar uma das cidades hist�ricas, retornando � noite para Belo Horizonte. Numa daquelas noites, jantamos com a poeta Henriqueta Lisboa. Em todas as viagens fomos acompanhados pelo cr�tico Geraldo Magalh�es.
Durante dez dias, estudamos atentamente o barroco mineiro e vimos grande parte dos trabalhos de Aleijadinho. Como ele gostava do Aleijadinho! Achava quase imposs�vel a aus�ncia de uma escola ou de uma academia na sua forma��o, embora reconhecesse que estava acima dos artistas de seu tempo. Tinha uma teoria curiosa sobre o sensualismo do Aleijadinho, chegando a afirmar com seguran�a que era homossexual como Michelangelo. Dentre todas as suas obras -descartava muitas das que lhe eram atribu�das-, a que mais admirava era a dos p�lpitos da Igreja do Carmo, em Sabar�.
Depois, viajamos at� a Bahia, onde fomos h�spedes de Assis Chateaubriand, e Ung� p�de comparar o barroco baiano com o mineiro. Em Salvador foi uma festa. Jorge Amado nos apresentou a v�rios artistas pl�sticos baianos: Carib�, M�rio Cravo, Emanuel Ara�jo. Z�lia Gattai, mulher de Jorge, guardava num quartinho de sua casa uma s�rie de trabalhos destes artistas que vendia para ajud�-los. Fomos ver o candombl� e visitamos a M�e Menininha, a quem, impressionad�ssimo, Ung� chamava de "La Reine Victoria".
Folha - Voc�s viajaram apenas pelo Brasil?
Bianco - N�o, no in�cio de novembro de 67, estivemos no Peru, em Lima, para receber o t�tulo de Doutor Honoris Causa. No final de novembro e come�o de dezembro, viajamos at� Buenos Aires, onde Ung� deu algumas confer�ncias no sal�o do Plaza Hotel, e conhecemos Bariloche. Tenho alguns registros fotogr�ficos e, creio, em super-8 destas viagens.
Folha - Como sua fam�lia via o relacionamento?
Bianco - Minha fam�lia, do ponto de vista pol�tico, sempre foi essencialmente liberal. Creio que este fator ajudou, pois aceitaram Ung� com um amor incr�vel. Minha m�e sempre entendeu. Da parte de meu pai houve algum momento de d�vida quanto a nossa intimidade, que nunca houve. Ung� se limitava a pegar na minha m�o e me dar beijinhos. � dif�cil as pessoas entenderem isso.
Folha - A sra. sofreu algum tipo de discrimina��o?
Bianco - No Brasil sofri algumas e lembrarei sempre. Uma vez, tomando o elevador do meu pr�dio, passamos uma situa��o desagrad�vel com um senhor de idade. Ung� chorou. Na Europa isso nunca aconteceu. Nunca me senti constrangida. Eu era respeitada pelos amigos dele. Nunca precisamos esconder nada.
Folha - Quantas vezes esteve na It�lia em companhia de Ungaretti?
Bianco - Fui � It�lia tr�s ou quatro vezes. Ele queria que eu participasse das coisas dele. Eu o acompanhei na premia��o de Veneza, na Universidade de S�o Marcos. Depois, em Roma, almo��vamos todos os dias na Trattoria del Buco, sempre em companhia de um grande nome da cultura italiana: Pasolini, Moravia, Elsa Morante.
Estivemos em Paris para visitar o seu maior amigo, Jean Paulhan, que estava muito doente. Ung�, al�m de o considerar como um irm�o, achava que "Les Fleurs des Tarbes" era uma das duas ou tr�s obras de est�tica que daria um sentido a nossa �poca. Tamb�m viajamos para a Su��a. Em Zurique, visitamos algumas das melhores cole��es particulares de arte moderna. Tudo o que aprendi sobre artes pl�sticas, aprendi com ele.
Folha - Pode dar um exemplo?
Bianco - Para constrangimento dos outros e satisfa��o minha, me ensinou que uma escultura tem de ser tocada. Quantas vezes n�o me fez sentir com as m�os, insistindo que eu as passasse na bunda das est�tuas. � incr�vel, ainda hoje n�o consigo me despir daquela emo��o. N�o me curei, preciso tocar. Ele tinha predile��es. Entre outras, me ensinou a amar os interiores de Vermeer e a contemplar a beleza dos Carpaccio de Veneza.
Folha - E quanto ao livro que publicaram juntos?
Bianco - "Di�logo" fez parte das comemora��es dos seus 80 anos. Nossos poemas foram publicados numa edi��o especial, de 120 exemplares, acompanhados de uma combust�o de Alberto Burri. Ung� me estimulou a escrever. Confesso que sempre filtrou minhas poesias. O livro foi traduzido em alem�o e em franc�s, pela Gallimard. Mais tarde foi incorporado �s suas obras completas, editadas pela Mondadori.
Folha - A sra. continua escrevendo poesia?
Bianco - Todos os dias. Sempre em italiano.
Folha - Os poemas de "Di�logo" foram escritos em italiano?
Bianco - Em italiano. N�o tenho dificuldade de escrever em portugu�s. Mas minha emo��o po�tica � italiana. Atualmente, estou tentando traduzir Anchieta para o italiano. Acho que precisamos resgat�-lo do esquecimento. Sinto que escreveu seu canto � Virgem Maria para todas as mulheres, as �ndias, as santas, as freiras, as vagabundas, as mulheres de rua. Quero traduzi-lo visando sua universaliza��o. Mas � muito dif�cil, tem acentos gong�ricos. Fiz tradu��es literais, agora estou lapidando, buscando o sentido total do poema.
Folha - At� quando a sra. esteve ligada a Ungaretti?
Bianco - At� praticamente o fim de sua vida. No final de 69, me escreveu uma carta dizendo que estava muito cansado. Senti que havia alguma coisa errada. Ele nunca deixou de me querer. Tenho como testemunho a dedicat�ria que ele fez constar na edi��o de "La Luce", editado antes de sua morte. S� que Ung�, consciente da proximidade da morte, preferiu se afastar para n�o me matar de amor.

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