S�o Paulo, domingo, 8 de dezembro de 1996
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A certeza da influ�ncia

DA REDA��O

A Folha realizou entrevistas por escrito com os tr�s principais representantes do concretismo, D�cio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos. Nas respostas -as perguntas foram as mesmas para todos-, eles conceituam o movimento, comentam -e criticam- as avalia��es que receberam e analisam a poesia brasileira atual.
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Folha - Qual a mais sucinta defini��o da poesia concreta? O que faz um poema ser concreto e n�o, por exemplo, expressionista, dada�sta, surrealista etc? Um poema concreto "stricto sensu" � necessariamente visual?
D�cio Pignatari - Em 1907, Picasso conclui o quadro sobre aquelas senhoritas da rua Avignon, em Barcelona. Imagine-se -40 anos depois- algu�m perguntando: "M. Picasso, que � cubismo?". Uma das respostas poss�veis, dentre as bem-educadas, poderia ser: "Connais pas". Ou ent�o: "Pergunte ao Raynal (Maurice). Ou ao Read (Herbert). Ou (daqui a alguns anos), ao Greenberg (Clement)".
Aos interessados de verdade (que n�o constituem multid�o), lembro que h� mais de tr�s d�cadas pode ser encontrado na pra�a o volume "Teoria da Poesia Concreta" (Brasiliense), devidamente atualizado, de nossa autoria.
Quanto � segunda pergunta dentro da pergunta: por que Bras�lia n�o � Nova York?
Quanto � terceira: a �nfase inicial no visual deveu-se � id�ia de assinalar a ruptura com a unidade-padr�o tradicional da poesia, o verso. Visual b�sico: "lettering & layout". Acrescentem-se: voz, som, cor, movimento, materialidade real (objetos, esculturas), materialidade virtual (holografia), elementos n�o-verbais (ic�nicos).
Haroldo de Campos - A melhor e mais sint�tica defini��o de "poesia concreta" (correspondente � fase "geom�trica" ou, como se pode reconhecer a posteriori, "minimalista" do movimento, aquela que traduz na pr�tica as propostas do plano piloto de 58) � a formulada por Octavio Paz em "Transblanco" (Siciliano, p�gs. 110-111): "Os senhores descobriram -ou inventaram- uma verdadeira topologia po�tica. � parte dessa fun��o de explora��o e inven��o, a poesia concreta � por si mesma uma cr�tica do pensamento discursivo e, assim, uma cr�tica de nossa civiliza��o. Essa cr�tica � exemplar. (...) A nega��o do discurso pelo discurso � talvez o que define toda a grande poesia do Ocidente, desde Mallarm� at� nossos dias. (...) A poesia moderna � a dis-pers�o do curso: um novo dis-curso. A poesia concreta � o fim desse curso e o grande re-curso contra esse fim".
Em outros termos, a poesia concreta seria a r�plica "verbivocovisual", numa l�ngua alfab�tica, da poesia ideogr�mica chinesa, re-imaginada e atualizada no horizonte da modernidade. O sin�logo e comparatista Eugene Eoyang (Bloomington, Indiana) p�de por isso escrever: "O chin�s �, de todas as l�nguas modernas, a mais concreta. O que o poeta concreto contempor�neo empenha-se em realizar � precisamente o que muitos poetas da tradi��o chinesa efetuaram naturalmente por s�culos".
Augusto de Campos - Tecnicamente, poesia concreta � a denomina��o de uma pr�tica po�tica, cristalizada na d�cada de 50, que tem como caracter�sticas b�sicas: a) a aboli��o do verso; b) a apresenta��o "verbivocovisual", ou seja, a organiza��o do texto segundo crit�rios que enfatizem os valores gr�ficos e f�nicos relacionais das palavras; c) a elimina��o ou rarefa��o dos la�os da sintaxe l�gico-discursiva em prol de uma conex�o direta entre as palavras, orientada principalmente por associa��es paronom�sticas.
Tal pr�tica concentra e radicaliza propostas anteriores que percorreram difusamente os movimentos de vanguarda do in�cio do s�culo (futurismo e dada�smo, em especial), retomados nos anos 50 com mais rigor construtivista. Essa � mais ou menos a fisionomia com que nasceu a poesia concreta, tal como praticada pelos brasileiros do grupo Noingandres e por Eugen Gomringer (este, menos interessado na dimens�o sonora).
Posteriormente, ela abriu espa�o para outras modalidades de poesia visual, que passaram a incluir elementos n�o-verbais (desenhos, fotos, grafismos). A poesia concreta brasileira, que consubstanciou uma das pr�ticas mais ortodoxas e construtivistas, aventurou-se tamb�m por essas sendas (ex: os poemas sem palavras -os "semi�ticos" de Pignatari ou o meu "olho por olho", experi�ncias dos anos 60), diferentemente do caso de Gomringer, o qual, que eu saiba, se manteve sempre fiel � ortodoxia da fase inicial.
Folha - Haroldo de Campos, em entrevista ao programa "Roda Viva", na TV Cultura de S�o Paulo, optou por uma defini��o ampla, segundo a qual toda grande poesia seria concreta. Isso n�o � muito gen�rico, tornando o movimento da poesia concreta sin�nimo de algo como "movimento da grande poesia em geral"?
D�cio - Parafraseando Borges: todo movimento po�tico inovador cria os seus pr�prios precursores. A poesia concreta utilizou aportes tecnol�gicos e radicalizou vetores da arte liter�ria experimental destes �ltimos cem anos (em 1997 celebra-se o centen�rio de "O Lance de Dados", de Mallarm�). Em fun��o dessa opera��o, criou tamb�m um crivo seletor das manifesta��es po�ticas do passado. Dessa forma, pode-se falar n�o de concretismo, mas da concretude de certos lances da produ��o liter�ria passada ou contempor�nea.
Folha - Segundo sua defini��o restrita, um poema concreto pode ser ruim, ou o r�tulo j� garante sua qualidade? Um mau poema concreto � necessariamente melhor, mais moderno, mais afinado com a hist�ria do que um bom soneto, ambos escritos hoje?
D�cio - Qualquer obra espec�fica, mesmo quando derivada de um bom programa ou boa proposta, pode ser ruim. Trata-se do processo de passagem de uma estrutura para uma conjuntura, de um desgaste da "tradu��o" de uma informa��o de alto repert�rio para outra de repert�rio restrito.
O mundo est� cheio de med�ocres obras simbolistas, cubistas, dodecaf�nicas, neoplasticistas, concretistas, cinemanovistas, nuvelevaguistas, eletroac�sticas, cagistas, surrealistas. Aten��o, por�m: � preciso estar atento e forte. H� casos de "naifs" de vanguarda, de primitivos avan�ados, mesmo na �rea liter�ria, que merecem considera��o. A pr�pria poesia concreta pode apresentar um caso desses: trata-se de Ronaldo Azeredo, o Rousseau da poesia concreta (aos leigos: o Henri Rousseau, amigo dos cubistas, n�o o grande pensador do Iluminismo franc�s). Aqueles que se classificam acima da mediocridade adoram (re) descobrir esses talentosos marginais.
Prestam, em verdade, importante servi�o cultural, mas n�o derivam as consequ�ncias necess�rias de seu entusiasmo e de suas descobertas. Exemplo: os cineastas brasileiros se recusam a filmar roteiros elaborados por outros. Resultado: o Brasil n�o tem, nem preza, os roteiristas, em qualquer �rea. Transponha-se o fen�meno para a MPB: ou o letrista-roteirista se mata (Torquato Neto), ou vira cronista de jornal (Aldir Blanc). Mas o grande Orestes Barbosa � o patrono deles. Outro exemplo: as hist�rias em quadrinhos n�o avan�am no Brasil porque n�o h� roteiristas. E os cartunistas e quadrinistas est�o cada vez piores... Mas s�o coisas nossas os poetas musicais: Noel, Ma�sa, Vinicius, Caetano, Chico. At� Jobim fez um prod�gio neste pa�s de bachar�is e analfabetos: "�guas de Mar�o". Algu�m n�o se disp�e a contar a hist�ria dos nossos compositores puros?
Augusto - Um mau poema (concreto ou n�o) � um mau poema � um mau poema. Agora, as formas tamb�m se esgotam e se convertem em f�rmulas. H� procedimentos da poesia concreta que j� se exauriram e tendem � repeti��o. Mas ainda maior � a exaust�o de formas e f�rmulas do passado, que foram exercitadas ao longo de muitos s�culos pelos maiores poetas de todas as l�nguas. O soneto � uma delas. Quem o quiser praticar, hoje, tem que se medir com Dante, Cam�es, Shakespeare, Mallarm�, Rimbaud, Hopkins, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos etc. etc. etc.
N�o h� maior pecado para um poeta do que refazer em linguagem med�ocre o que j� foi feito melhor por outros. S� o humor e a metalinguagem podem dar vida, hoje, a uma forma j� t�o recorrida e esquadrinhada. O soneto sob o signo da par�dia. � o que eu chamei de "soneterapia"... Ou, quem sabe, algum derradeiro sopro, algum "antique" reciclado em linguagem moderna, como os que contrafez Cummings (um �ltimo competent�ssimo competidor), desmontando a relojoaria do soneto com os seus deslocamentos sint�ticos e as suas atomiza��es vocabulares. O soneto tem muito passado e pouco futuro.
Por outro lado, � ineg�vel que as estruturas formais propostas, n�o s� pela poesia concreta, mas por toda a pr�tica da poesia da modernidade, t�m muito mais sintonia com a ambiguidade espa�o-temporal, os ritmos, os conceitos e as provoca��es da nossa era. De todo modo, eu nunca preferiria um mau poema concreto a um bom soneto. O dif�cil � encontrar um soneto escrito, hoje, com a originalidade que se requer de qualquer bom poema.
Folha - A poesia concreta era a �nica op��o historicamente certa ou havia e h� outras possibilidades igualmente v�lidas? Se valer a primeira alternativa, ent�o a poesia brasileira contempor�nea seria melhor do que as outras que n�o optaram por esse caminho? Caso contr�rio, quais seriam as outras op��es que teriam dado certo, inclusive no Brasil?
D�cio - "O g�nio � um erro do sistema", disse Klee. Mas eu tenho quase pronta uma quase-teoria dos Impulsos Criativos Contextuais (ICC), segundo a qual todo e qualquer indiv�duo ou grupo pode otimizar a sua capacidade de compet�ncia e desempenho se os tempos, os locais e as circunst�ncias forem prop�cios. � uma esp�cie de teoria da anuncia��o-sem-deus: quando algo novo se revela, no esp�rito ou na t�cnica, as aves da criatividade voam pelas portas e janelas abertas da gaiola da ignor�ncia e da conform�ncia.
Qual teria sido a outra op��o para a bossa nova? Ou para Bras�lia? Ou para o Sputnik? Ou Pel� e o primeiro t�tulo mundial de futebol? Ou o Masp, o MAM, a Bienal, a Vera Cruz, o TBC (Teatro Brasileiro de Com�dia)? Ou a condessa Pereira Carneiro, o "JB", o M�rio Faustino? Ou a Cinemateca e o Festival Stroheim? Ou os primeiros sons eletroac�sticos trazidos por Koellreuter? Ou a presen�a de Max Bill, Boulez, Calder? Ou L�cio Meira e a ind�stria automotiva?
Augusto - Seria pretensioso dizer que a poesia concreta era a �nica op��o. Nem me cabe, como um dos protagonistas do movimento, fazer eu pr�prio esse tipo de avalia��o ou de julgamento.
� certo, por�m, que a poesia concreta n�o nasceu por gera��o espont�nea ou mera idiossincrasia. Nem foi algo t�o isolado. Ao contr�rio, foi um movimento internacional, translingu�stico, que teve resson�ncia em poetas de muitos pa�ses, do Ocidente ao Oriente. A novidade � que os brasileiros estiveram, desde a primeira hora, envolvidos com essa experi�ncia, como fundadores do movimento, que surgiu de uma necessidade hist�rica -a da retomada, na d�cada de 50, das propostas das primeiras vanguardas.
A renova��o da linguagem art�stica, operada entre o fim do s�culo 19 e o in�cio deste, fora interrompida pela interven��o traum�tica das duas grandes conflagra��es mundiais. Ap�s a Segunda Guerra houve em todos os campos art�sticos um movimento no sentido de recuperar aquelas propostas que o nazismo e o stalinismo haviam marginalizado como "arte degenerada" e "arte decadente". Em m�sica, se deu a reabilita��o da Escola de Viena e da obra pioneira de Ives, Var�se e outros, tendo o minimalismo radical de Webern como ponto de partida. Em artes visuais houve a retomada das propostas radicais da arte n�o-representativa.
Em poesia cumpria resgatar a revolu��o iniciada por Mallarm� ("Un Coup de D�s") e ampliada por Pound, Joyce, Stein, Cummings, Apollinaire e os movimentos de vanguarda das primeiras d�cadas. Tratava-se de prosseguir na desmontagem das estruturas verbais do discurso contratual, insuficiente para abranger o universo da imagina��o e da sensibilidade. Desautomatizar a linguagem (a "revolu��o surrealista" deixara intactas as estruturas do discurso...) e revivificar as palavras, a partir da sua materialidade elementar, visual e sonora. Sintonizar a pr�tica po�tica com o nosso tempo, no limiar da era tecnol�gica. � poss�vel que a pr�pria "excentricidade" da poesia brasileira em rela��o aos grandes centros universais nos tenha dado uma perspectiva diferenciada e peculiar, pois, na verdade, nos anos 50, os poetas franceses e hispano-americanos continuavam surrealistas, ignorando Mallarm�, e os norte-americanos, os "beat", tamb�m tendiam ao surrealismo, sem levar em conta o objetivismo de Pound ou Cummings.
Sem pretender que a poesia concreta tivesse sido o �nico caminho, n�o posso recusar a evid�ncia de que demos uma contribui��o original, paradoxalmente mais avan�ada do que a de muitos outros centros importantes, onde a consci�ncia desses novos processos po�ticos s� se afirmaria no fim dos anos 60 e nem sempre com a vitalidade do movimento brasileiro.
Folha - Que poetas, hoje, de filia��o n�o-concretista o sr. considera dignos de aten��o?
D�cio - Antes da poesia, a prosa, essa infeliz ugandense da miserabilidade criativa brasileira. 1956: data de lan�amento conjunto da poesia concreta e de "Grande Sert�o: Veredas", de Guimar�es Rosa, artefatos espaciais, avan�ados da cultura brasileira, revolu��o liter�ria na Am�rica Latina, abominados at� hoje pelos nacional�ides, stalinistas ou n�o.
Rosa safou-se via consumo da oralidade caipira e do aned�tico de um amor gay no sert�o do s�culo passado. Ningu�m aprendeu-lhe a li��o de fundo (Homero, Euclides, Joyce), excetuados os concretos, direta ou indiretamente trabalhando nas catacumbas da prosa brasileira, para preservar a linha-linguagem que vinha de Machado, Euclides, Oswald, M�rio, a saber: a "proesia", das "Gal�xias", de Haroldo; "Catatau", a melhor obra de Leminski; "O Mez da Grippe", de Val�ncio Xavier, o primeiro romance ic�nico brasileiro; os meus contos sobre a oculta��o do cad�ver da est�ria, de "O Rosto da Mem�ria", que inclui, de quebra, uma violenta pe�a teatral, "Aquelarre" (= campo do bode, em basco = sab� de bruxas, entre n�s, cf. Goya), e "Panteros", um romance que acaba no meio (os tr�s �ltimos est�o a merecer novas edi��es, devidamente corrigidas).
Os poetas: a) coet�neos nossos, bem conhecidos, que aceitaram o desafio e abriram raia pr�pria de performance, entre o verso, a poesia concreta e a poesia visual (Afonso �vila, Jos� Paulo Paes); b) poetas da gera��o seguinte, a de Leminski, com versos recortados e decupados epigramaticamente, �s vezes abeirando-se do que seria uma letra para m�sica pop-brasileira (Sebasti�o Uchoa Leite, Duda Machado, Carlos �vila, Ant�nio Ris�rio); c) adeptos program�ticos da "poesia visiva", como Sebasti�o Nunes; d) poetas de requintada metalinguagem hipot�tica, como Nelson Ascher; e) poetas de vol�til discurso logopaico, desenvolvendo o que denomino de "sem�ntica musical" (Carlito Maia, Marco Ant�nio Saraiva). Mas o levantamento organizado da produ��o po�tica dos anos 80-90 est� por ser feito.
Haroldo - A "poesia concreta" � o caso-limite da po�tica da modernidade. Isto n�o implica uma considera��o axiol�gica (um ju�zo de valor), mas um crit�rio hist�rico-liter�rio, de evolu��o cr�tica de formas. H� poemas concretos de primeira linha, como tamb�m h� dilui��es frouxamente concretas, tanto no Brasil quanto nos v�rios pa�ses para os quais o movimento se exportou.
Por outro lado, h� poetas de grande n�vel artesanal, como nosso saudoso companheiro M�rio Faustino, que desenvolveram, contemporaneamente � "fase her�ica" do movimento, uma poesia em versos de alta qualidade, s� no detalhe afetada pelo repert�rio de t�cnicas da poesia concreta (a qual, sem a ela vincular-se, ele prestigiou e promoveu em estudo memor�vel).
Folha - Na sua opini�o o que ocasionou a dissens�o neocroncretista? As diverg�ncias foram sobretudo ideol�gicas ou est�ticas? Como o sr. avalia hoje a produ��o po�tica de Ferreira Gullar?
D�cio - Enigma. Hip�teses vagas. Quem sabia algo um pouco mais s�lido era M�rio Faustino, que morreu pouco depois, sem deixar depoimento, que eu saiba. Mas o Jos� Lino Grunewald, carioca da gema, p�-de-arroz das Laranjeiras, deu-me algumas dicas.

Continua � p�g. 5-9

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