S�o Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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A inquietude de Kant

MARCO ZINGANO
DUAS INTRODU��ES � CR�TICA DO JU�ZO

Immanuel Kant Organiza��o: Ricardo Ribeiro Terra Tradu��o: C. Novaes, H. Bornebusch, M. Suzuki e outros Iluminuras, 132 p�gs. R$ 18,00
Obras sobre a filosofia de Kant s�o bem-vindas; obras bem feitas sobre a filosofia de Kant s�o particularmente bem-vindas. Este � seguramente o caso de "Duas Introdu��es � Cr�tica do Ju�zo", que oferece as tradu��es, muito bem cuidadas, das duas introdu��es � "Cr�tica do Ju�zo", al�m de um importante ensaio de Ricardo Terra sobre "Reflex�o e Sistema" e de um pequeno gloss�rio (�til) no fim do volume. A primeira "Introdu��o" � a reedi��o, revista, da tradu��o feita por Rubens Rodrigues Torres Filho, publicada inicialmente em 1974; a segunda "Introdu��o" -a vers�o oficial que figura na "Cr�tica"- foi traduzida por uma equipe de professores. Assim, ao lado da edi��o integral da "Cr�tica", feita por Rohden e Marques, publicada h� dois anos (que infelizmente n�o inclui a primeira "Introdu��o"), o leitor brasileiro tem agora � sua disposi��o uma obra acad�mica, erudita, que preenche uma lacuna com muita felicidade.
Como j� percebeu o leitor, a "Cr�tica" tem duas "Introdu��es". A primeira foi preterida por Kant em proveito de uma segunda, que se tornou assim a introdu��o "oficial". A raz�o do procedimento foi a alegada conveni�ncia de uma vers�o mais enxuta. A primeira "Introdu��o" teria ent�o o destino comum a todo escrito preterido, n�o fosse o fato de Kant t�-la enviado a seu antigo aluno, Jacob Beck, para que ele a utilizasse numa obra de esclarecimento e divulga��o sobre a filosofia kantiana. Publicada por Beck de forma incompleta, a primeira "Introdu��o" ganhou o estatuto incerto de "meio oficial", meio esquecida, meio lembrada, at� que Dilthey descobriu os manuscritos e Bueck a publicou integralmente em 1914.
A vers�o oficial para a conveni�ncia de uma segunda "Introdu��o" n�o deixa de ser verdadeira, mas dificilmente cont�m toda a verdade. O melhor modo de ir al�m da vers�o oficial consiste em analisar para o que introduziam estes dois textos. Isto nos leva a uma r�pida aprecia��o da "Cr�tica do Ju�zo", que � a terceira grande obra cr�tica de Kant. Ela � tamb�m a �ltima obra do sistema cr�tico, isto �, do sistema que estabelece os fundamentos e os limites do saber. De uma forma tocante, Kant declara no pref�cio da "Cr�tica do Ju�zo" que "com isso termino minha inteira tarefa cr�tica".
H� certamente um tom de al�vio nessa confiss�o. Com efeito, quando, em 1781, Kant publicou a primeira obra cr�tica, a "Cr�tica da Raz�o Pura", ele esperava ter delineado nela todo o sistema cr�tico. Na parte final dessa obra, ele acreditava ter tratado satisfatoriamente o conceito de liberdade (pr�tica e transcendental), pelo menos "grosso modo". A publica��o, em 1785, da "Fundamenta��o para uma Metaf�sica dos Costumes" ser�, por�m, a ocasi�o para que ele se d� conta que ainda n�o � bem assim; em 1788, a "Cr�tica da Raz�o Pr�tica" introduz certas altera��es no sistema cr�tico e consagra uma nova resposta ao problema da liberdade e moralidade. Com estes dois dom�nios finamente analisados, Kant tem agora em suas m�os o sistema completo do conhecimento racional por conceitos. Mas tr�s novos problemas v�o surgir para mostrar-lhe que ainda n�o disp�e do sistema cr�tico inteiro.
Primeiro, a genialidade da "Cr�tica da Raz�o Pura" residia em grande parte na demonstra��o de que a natureza toda constitui um sistema segundo leis transcendentais que o entendimento lhe prescreve, e n�o recebe dela. No entanto, Kant d�-se conta, mais tarde, que a prescri��o transcendental de leis � natureza � perfeitamente compat�vel com uma natureza emp�rica t�o rica e variegada que nos seria poss�vel estabelecer parcialmente leis aqui, ali ou alhures, sem nunca por�m poder trazer todas essas leis sob um mesmo sistema.
Este � o primeiro problema que dar� origem � "Cr�tica do Ju�zo". A resposta de Kant consistir� em mostrar que a unidade da natureza segundo leis emp�ricas n�o � uma regra constitutiva do entendimento, mas sim uma pressuposi��o transcendental do ju�zo: n�s tomamos a natureza como se fosse um sistema e pensamos assim consequentemente. Ora, isso significa que os conceitos de reflex�o, comprimidos no fim da anal�tica dos princ�pios da "Cr�tica da Raz�o Pura", ganham agora casa nova, enfim uma "Cr�tica" s� para eles... Mas isso tem seu pre�o. A pressuposi��o transcendental subjetivamente necess�ria de um sistema da natureza faz com que a faculdade de julgar deixe de ser uma faculdade de meramente subsumir o particular sob o universal para tamb�m procurar o universal para o particular. Da� a famosa distin��o entre ju�zos determinantes e reflexionantes, distin��o que conhecer� grande sucesso mais recentemente e atrair� muitos leitores para a "Cr�tica do Ju�zo".
Mas n�o � s� isso. Kant percebe que o singelo ju�zo "a rosa � bela" reivindica ades�o de todos sem contudo dar uma propriedade da coisa ou enunciar um dever moral. Para explicar essa estranha caracter�stica, Kant enfrenta um terreno que lhe era desconhecido e nos fornece aqui mais um exemplo de sua genialidade. Sem ir a concertos e dispondo somente de um velho quadro de Rousseau, o fil�sofo lan�a as bases de uma doutrina altamente inovadora do belo. Servindo-se de no��es surpreendentes como "finalidade sem fim", Kant coloca no centro do fen�meno est�tico a no��o de jogo, irredut�vel � de m�mesis. O belo torna-se o livre jogo da imagina��o que se mostra receptiva ao conceito sem ser determinada por um conceito; ou, numa outra express�o, o belo, sem ser um pensamento, nos d� muito a pensar. E isto n�o � tudo; distinto do belo, Kant analisa o sublime, marcado pelo excesso e pelo informe, um "abismo" que se revela na ruptura, na viol�ncia, no dilaceramento da imagina��o. Imprevis�vel Kant, que descobre "um prazer que somente � poss�vel atrav�s de um desprazer"...
Enfim, a no��o de organismo, que constitui a segunda parte da "Cr�tica do Ju�zo". Esta � a parte mais datada de sua obra, pois Kant depende muito de uma biologia ainda grandemente insatisfat�ria. Tem o m�rito de mitigar o erro e limitar o finalismo do organismo ao t�tulo de "como se". Cuvier e Geoffroy Saint-Hilaire nem iniciaram ainda sua c�lebre controv�rsia. Velho tema da filosofia, o fim pressuposto no organismo � aproximado do fim moral com um enorme cuidado para n�o confundir os dom�nios: o homem � moralmente um "fim final", mas, como ser natural, n�o � sen�o uma parte da natureza, ela sendo o "�ltimo fim". Humildade na natureza, grandeza da lei moral, aqui reaparece um tema caro a Kant.
Ora, tudo isso veio gradativamente � tona e for�ou Kant a uma terceira "Cr�tica", para assim poder lan�ar os fundamentos do inteiro sistema cr�tico. E, de certo modo, Kant cede � for�a dos argumentos ao mesmo tempo em que teme ver prolongar-se indefinidamente a tarefa cr�tica. � particularmente interessante observar na primeira "Introdu��o � Cr�tica do Ju�zo" o reconhecimento da complexifica��o de sua tarefa com termos impressionistas: por exemplo, o variegado emp�rico da natureza � apresentado como uma "inquietante disparidade". Ao mesmo tempo, Kant quer redigir o sistema metaf�sico das ci�ncias naturais e o dos costumes: o tempo passa, ele envelhece.
Em 26 de maio de 1789, Kant reclama do fato de que Marcus Herz lhe enviou o manuscrito do "Ensaio sobre a Filosofia Transcendental" de Maimon; afinal, a obra � grande e dif�cil, e ele, "com 66 anos, (tem) a enorme tarefa de terminar (seu) plano, de um lado, publicando a �ltima parte da 'Cr�tica', a saber, 'do Ju�zo', que deve sair logo, de outra parte, elaborando um sistema de metaf�sica, da natureza assim como dos costumes, conforme �s exig�ncias cr�ticas". Mas, na introdu��o oficial da "Cr�tica do Ju�zo", o tom � sereno, confiante. As pe�as encaixam-se, a tarefa cr�tica est� terminada, a "disparidade inquietante" encontrou seu lugar: o tom da introdu��o � professoral, a autoridade est� restabelecida. Pelo menos na superf�cie as �guas est�o calmas.
A utilidade da publica��o das duas "Introdu��es" parece-me assim evidente; R. Terra insiste com raz�o no Kant que pensa ao escrever, as "Introdu��es" mostram como ele apaga os vest�gios ao publicar. A arte de escrever tem seu contraponto na arte de ler. Para terminar, gostaria de ressaltar a qualidade acad�mica do trabalho. Um �nico (mas pequeno) sen�o: o organizador (ou sua equipe) poderia ter feito notas ao longo da tradu��o. Pelo menos num caso a aus�ncia de notas foi prejudicial. Kant fez uma longa nota ao fim da parte 8� da "Primeira Introdu��o". Ele a suprimiu na introdu��o oficial da primeira edi��o da "Cr�tica do Ju�zo", mas voltou a public�-la, modificada, no in�cio da se��o 3�, da segunda edi��o. � uma pena que isto n�o tenha sido comentado. A nota faz refer�ncia a uma cr�tica que Kant teria sofrido em rela��o ao que escreveu numa nota da p�g. 9 (ed. Academia) do pref�cio da "Cr�tica da Raz�o Pr�tica". Ningu�m descobriu quem fez a obje��o. Espero que, na reedi��o deste trabalho, se possa saber finalmente quem � o autor da obje��o.

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