S�o Paulo, segunda-feira, 7 de agosto de 1995
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O audiovisual como sistema

PAULA MONTERO

Televis�o, Publicidade e Cultura de Massa
Jos� M�rio Ortiz Ramos Vozes, 293 p�gs. R$ 31,20

Aquilo que Guy Debord denominou de ``sociedade do espet�culo" emerge quando a produ��o da cultura se faz em escala industrial, visando a um mercado de massa. O espet�culo n�o pode ser visto apenas como o excesso de um mundo da vis�o, o simples produto de t�cnicas de difus�o de imagens em massa. Para Debord, a sociedade do espet�culo � uma maneira de ver o mundo que se materializa. Este talvez seja o pano de fundo, o n�o dito que d� a verdadeira for�a da argumenta��o que Jos� M�rio Ortiz Ramos desenvolve em seu livro sobre o sistema audiovisual no Brasil. Ao colocar a produ��o da imagem no centro de sua reflex�o, o autor desloca inteiramente a linha de argumenta��o -centrada nos intelectuais e na cultura erudita-, que at� muito recentemente alimentou o debate em torno da cultura brasileira, e enfrenta o desafio de demonstrar como e por que essa ``parte maldita" da produ��o cultural que � a cultura de massa se torna progressivamente um dos setores mais importantes na produ��o de nosso imagin�rio.
As consequ�ncias dessa centralidade da imagem no trabalho de Jos� M�rio traz portanto oxig�nio � reflex�o sobre a cultura. Ele permite evitar os v�cios, as redund�ncias e as morda�as ideol�gicas, que congelavam o pensamento atormentado pela busca da identidade nacional. O autor d� assim, neste livro, maior amplitude �s preocupa��es que j� se delineavam em escritos anteriores, nos quais procurava analisar os mecanismos e condi��es que davam forma � produ��o cinematogr�fica brasileira (``Cinema, Estado e Lutas Culturais 50-70", Paz e Terra, 1983).
Qual � o impacto das formas de produ��o sobre o conte�do, o estilo das imagens e a auto-representa��o que os produtores t�m de si mesmos? Esta preocupa��o � o fio de Ariadne que tem percorrido a obra do autor e que melhor caracteriza sua abordagem dos fen�menos culturais. Neste livro, a quest�o ganha um escopo mais amplo porque, ao contr�rio de seus trabalhos anteriores, ele abre o foco de abrang�ncia da observa��o e coloca o cinema ao lado de outras ``artes" visuais: a televis�o e a publicidade. O resultado dessa aproxima��o quase her�tica, para quem v� no cinema a express�o da mais alta cultura, traz resultados surpreendentes.
Em primeiro lugar, porque p�e em evid�ncia o fato de que o campo de produ��o de imagens opera como um sistema no qual cinema, televis�o e publicidade mant�m entre si um movimento cont�nuo de competi��o e associa��o. Em segundo lugar, porque ela torna evidente que nessa rela��o o setor mais forte, e aquele que se tornar� refer�ncia para o campo, ser� o setor que mais rapidamente for capaz de definir um padr�o eficiente de produ��o audiovisual. Finalmente, revela que muito da discuss�o pol�tico-ideol�gica sobre arte, cria��o e independ�ncia autoral est� diretamente amarrado aos dispositivos tecnol�gicos da produ��o ficcional. O autor pode assim abandonar a trilha j� batida do debate que denuncia os conte�dos ideol�gicos da cultura de massa para compreender como os meios de produzir esse tipo de cultura modelam os criadores e suas criaturas. Vale a pena nos determos mais longamente nestas tr�s faces do sistema, porque elas nos d�o a dimens�o do que est� em jogo no debate sobre a cultura de massas.
Toda a primeira parte do livro de Jos� M�rio � dedicada ao que ele chama de ``materialidade" da produ��o audiovisual, sua din�mica interna e o modo como ela repercute na rela��o que os autores t�m com sua obra. O dilema-chave dos produtores reside no fato de que a estabilidade de seu campo de atua��o depende do grau de industrializa��o da produ��o cultural e de seu correlato, a conquista de um mercado de massa. A f�rmula desse ``sucesso" parece j� ter sido definitivamente estabelecida: divis�o de trabalho, rotiniza��o das tarefas, filmagens em est�dio, padroniza��o do produto (roteiro, fotografia, cortes etc.), serializa��o e linguagem popular.
Jos� M�rio mostra, portanto, como o campo da cria��o est� completamente tensionado por essa exig�ncia de mercado. Ela precisa necessariamente construir as bases de uma produ��o industrializada. Para que essa ``usina do imagin�rio" se torne eficiente, � preciso capacidade de investimento, dom�nio t�cnico e tradi��o no uso da linguagem visual. Quando esse trip� funciona a pleno vapor, pode-se dizer que a ``modernidade" chegou a um campo visual determinado: ela consegue estabilizar um campo, padronizando seu modo de produ��o da cultura.
Ora, na verdade, cinema, televis�o e publicidade alcan�aram essas condi��es em velocidades desiguais. Levando-se em conta essas determina��es materiais, o autor acaba demonstrando que o cinema � a parte mais fr�gil do sistema. Ele sempre se ressentiu da velocidade com que a televis�o e sobretudo a publicidade alcan�avam est�gios mais avan�ados de racionaliza��o da produ��o e dom�nio tecnol�gico. A televis�o desenvolve-se na d�cada de 50, quando a primeira tentativa de industrializa��o do cinema fracassava. Nos anos 70, j� se tornava evidente que a articula��o do cinema com a publicidade e a televis�o era inevit�vel. Nos anos 80, muitos j� saudavam os filmes publicit�rios como cinema bem-sucedido.
Nessa rela��o controversa do cinema com a televis�o e a publicidade est� um dos aspectos mais interessantes do trabalho de Jos� M�rio. Ligado, por investimento intelectual e at� mesmo por la�os de fam�lia, ao cinema (Carlos Ortiz seu tio, foi reconhecido diretor na d�cada de 50), o autor faz uma den�ncia bastante ambivalente contra os produtores da s�tima arte. Considera o cinema, em contraposi��o � televis�o e � publicidade, a ponta mais ``culta" do sistema. No entanto, tamb�m reconhece que, tecnologicamente, � a mais pobre e inst�vel. Jos� M�rio mostra, com certo distanciamento cr�tico, como a precariedade tecnol�gica se transforma em uma ideologia da ``est�tica da pobreza", claramente expressa pelos arautos do Cinema Novo.
Embora ele considere um avan�o o modo como o cinema se desvencilha desse medo da absor��o de tecnologia de ponta e se distancia dessa identifica��o engendrada pelo Cinema Novo entre precariedade t�cnica e valor art�stico, Jos� M�rio v� sem grande entusiasmo a aproxima��o do cinema com a televis�o e, sobretudo, com a publicidade, que passar� progressivamente a dar o tom da ``modernidade" no campo das artes visuais. A inser��o do cinema no universo publicit�rio � um processo doloroso para os que gostariam de preservar a independ�ncia da cria��o. Seria��o dos filmes, estereotipia dos roteiros, da fotografia das loca��es, introdu��o de merchandising na trama tornam-se receita quase obrigat�ria para os que pretendem alcan�ar o mercado.
Est� posto a� um dilema que na verdade � maior que o campo das artes visuais: a contradi��o sempre crescente entre padroniza��o da produ��o e experimenta��o, criatividade. Muitos autores j� se debru�aram sobre ele, desde que a Escola de Frankfurt denunciou a t�cnica como ideologia da domina��o. Jos� M�rio procura evitar a polariza��o que oscila entre a demoniza��o da tecnologia e a sua exalta��o como or�culo da modernidade. A segunda parte do livro, voltada para a an�lise de tr�s g�neros cinematogr�ficos -a comicidade e o melodrama revividos no sucesso dos ``Trapalh�es", o cinema policial e o cinema para juventude-, sugere que h� um caminho poss�vel para que o cinema atinja com sucesso as grandes massas.
De um lado, ele precisa necessariamente apoiar-se na televis�o (usar sua seria��o, seu ``star system" etc.) e na publicidade (seus cortes r�pidos, pouco di�logo, merchandising etc.), de outro, ele precisa recuperar as matrizes culturais enraizadas no imagin�rio popular tradicional e na cultura pop mais recente. O resultado disso � bastante duvidoso. Por mais que o autor procure demonstrar um certo otimismo ao ver no sucesso dos ``Trapalh�es", a emerg�ncia de um cinema mais afinado com o ``pa�s que se moderniza", o tributo a pagar em criatividade e inven��o para alcan�ar as massas talvez seja alto demais.
O debate que se travou entre os realizadores nestas �ltimas d�cadas � bastante revelador quanto � l�gica do sistema. Na verdade, a press�o pela conquista de um padr�o de produ��o audiovisual como �nica maneira de viabilizar economicamente o cinema, restringe enormemente as alternativas da linguagem cinematogr�fica. Quando a produ��o da cultura se faz segundo uma escala industrial, os meios do espet�culo s�o ao mesmo tempo sua finalidade. N�o que eu compartilhe da auto-representa��o dos produtores no sentido de pensar que apenas o cinema � o lado ``culto" do sistema. No entanto, n�o h� como n�o estremecer diante da constata��o do autor de que um redator de publicidade passa a ocupar hoje o lugar do cineasta no terreno da discuss�o cultural e de que o filme publicit�rio passa a ser tratado como arte, com direito a autoria e quejandos.
Evidentemente, at� mesmo a publicidade poderia vir a ser um modo de comunica��o inovador, se lev�ssemos a s�rio as proposi��es do fot�grafo da Benetton, Oliviero Toscani, quando este critica no publicit�rio sua ``cultura mesquinha da felicidade". Mas ainda n�o chegamos l�. Enquanto isso, se a alternativa do incentivo estatal j� se esgotou, seria necess�rio pensar rapidamente na constru��o de novos caminhos para o cinema brasileiro... Porque a televis�o e, particularmente, a publicidade j� sabem muito bem a que vieram.

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