S�o Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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A GEN�TICA EM BRANCO E PRETO

GAIL VINES
DA "NEW SCIENTIST"

A tomada de impress�es digitais, inventada em Bengala durante o dom�nio brit�nico na �ndia, buscava uma maneira segura de identificar seus s�ditos coloniais.
Satisfeito com a descoberta de que as impress�es digitais constitu�am uma maneira confi�vel de identificar os indiv�duos, Francis Galton, pai da eugenia moderna, esperava poder provar que elas tamb�m revelavam a "ra�a" de cada indiv�duo.
Ele e seus colegas examinaram milhares de impress�es digitais de indiv�duos classificados como ingleses, galeses, judeus e negros.
Mas, em 1892, Galton foi for�ado a admitir o fracasso: n�o havia diferen�as sistem�ticas entre as impress�es digitais dos grupos.
Agora, um s�culo depois, alguns cientistas retomaram a mesma procura. Desta vez, por�m, as impress�es digitais que est�o examinando s�o gen�ticas -e talvez n�o admitam uma derrota t�o facilmente.
Incentivados pelo impacto que as impress�es digitais de DNA j� exerceram sobre a medicina legal, alguns geneticistas j� procuram "assinaturas" no DNA humano que possam ajudar pesquisadores a adivinharem, com boas chances de acerto, a cor de pele e os tra�os do rosto de um suspeito.
Atualmente, os testes de DNA s�o realizados depois da captura dos suspeitos, ajudando a definir culpa ou inoc�ncia.
Mas, se os geneticistas encontrarem o que procuram, � poss�vel que, dentro em breve, m�dicos legistas j� possam prever as origens "raciais" dos suspeitos bem antes de serem detidos.
� desnecess�rio dizer que isso ser� t�o malvisto quanto as pr�prias id�ias de Francis Galton sobre ra�a e eugenia.
A pergunta que os cr�ticos ir�o colocar � n�o apenas qual o grau de exatid�o de tais testes, mas se a id�ia toda faz qualquer sentido, tendo em vista que a pouca diversidade gen�tica humana � bastante bem distribu�da por toda a esp�cie.
Tamb�m surgem preocupa��es de natureza pol�tica. Numa era de "limpeza �tnica" e ressurg�ncia de nacionalismos, ser� que qualquer tipo de teste "racial" gen�tico n�o iria criar mais problemas do que seria capaz de resolver, mesmo em se tratando de um teste baseado na min�scula fra��o dos genes humanos que realmente variam segundo a cor da pele e outras caracter�sticas "raciais ou "�tnicas" vis�veis?
Vale imaginar os benef�cios que poderiam resultar se m�dicos legistas pudessem elaborar "bancos de suspeitos" baseados em amostras de sangue, s�men ou cabelos tirados dos locais dos crimes.
Tomemos, por exemplo, a quest�o da cor da pele. Ela parece ser influenciada por tr�s ou quatro pares de genes que trabalham em conjunto, de forma "cumulativa".
Mesmo assim, as diferen�as gen�ticas provavelmente s�o respons�veis por apenas 70% a 80% da varia��o na cor de pele. Sua cor, assim como a cor dos olhos e dos cabelos s�o bastante complexas.
Assim, mesmo que se dispusesse de sequ�ncias gen�ticas relevantes, n�o seria nada f�cil criar bancos de suspeitos.
A maioria das caracter�sticas f�sicas humanas depende n�o de um, mas de v�rios genes, e, para determinar quais genes influenciam determinada caracter�stica, seria preciso acontecer o que Alec Jeffreys, inventor da impress�o digital de DNA, descreve como uma "profunda revolu��o na gen�tica molecular.
Segundo ele, "� at� poss�vel que tais an�lises de DNA acabem por se provar imposs�veis de fazer na pr�tica".
Contudo, h� testes mais grosseiros que rendem previs�es estat�sticas. Eles se baseiam em trechos do DNA que n�o t�m nada a ver, por exemplo, com cor de pele.
Walter Bodmer, do Fundo Real de Pesquisas em C�ncer (Reino Unido), prev� que, em alguns anos, amostras tiradas do local de um crime poder�o dizer que "as chances de a pessoa ser bengalesa, galesa, ou qualquer outra coisa s�o 50 vezes maiores que a m�dia".
Ian Evett, do minist�rio brit�nico do Interior, diz que seu teste de DNA � capaz de distinguir, em 85% dos casos, "caucasianos" e "afro-caribenhos". O teste se baseia nas aparentes diferen�as de tr�s trechos do DNA humano.
Como a maior parte dos trechos de DNA usados para a diferencia��o de tipos na medicina legal, as tr�s regi�es diferem amplamente de uma pessoa a outra, independente de sua ra�a.
Mas, segundo os cientistas, quando se examina todas as tr�s regi�es, � poss�vel estimar a probabilidade de algu�m fazer parte de um grupo racial espec�fico.
Por�m, esse tipo de teste nunca poder� produzir mais do que previs�es grosseiras sobre "bengaleses" versus "galeses".
As assinaturas de DNA nas quais se baseiam nunca s�o encontradas exclusivamente em um grupo racial. O que varia de grupo para grupo � a frequ�ncia de ocorr�ncia de tais assinaturas.
E, mesmo assim, n�o existem divis�es bem delimitadas entre grupos raciais que possam ser interpretadas como "marcadoras de fronteiras de DNA".
As an�lises de prote�nas encontradas no sangue contam a mesma hist�ria. Nem as prote�nas do sangue, nem os genes que as codificam definem limites entre grupos "raciais".
Em lugar disso, tudo que esses marcadores moleculares revelam s�o grada��es cont�nuas em frequ�ncias gen�ticas.
Em suma, o conceito de tipos raciais homog�neos bem definidos � ilus�rio, produto de categoriza��es culturais combinadas com pequenos pacotes de genes, em sua maioria n�o identificados, que evolu�ram para adaptar pele, cabelos e tra�os faciais �s condi��es clim�ticas locais.
Tais genes, para Jonathan Kingdon, bi�logo da Universidade de Oxford (Reino Unido), "conferem semelhan�as superficiais a pessoas que na verdade t�m origens muito diversas".
Tudo isso, por�m, pode facilmente ser esquecido, se os testes de DNA projetados para fornecerem previs�es de apar�ncia f�sica fortalecerem a cren�a popular na validade cient�fica de se fazer testes de tipos raciais.
Paul Rabinow, antrop�logo da Universidade da Calif�rnia, em Berkeley, teme que, em consequ�ncia da biologia molecular, "o conceito de ra�a volte � tona com mais for�a".
Para desenvolver testes raciais de DNA, mesmo que grosseiros, os geneticistas precisam de amostras de DNA de muitos indiv�duos, de muitas popula��es diferentes.
No in�cio do ano, a pol�cia brit�nica criou o primeiro banco nacional de dados de DNA. Nos EUA, �rg�os policiais de mais de 20 Estados j� criaram bancos de DNA para fins de medicina legal. E um banco computadorizado nacional est� chegando �s redes.
Outra fonte de material para a "antropologia m�dica legal" � o projeto genoma humano -especialmente seu ramo conhecido como Projeto Diversidade do Genoma Humano.
Os cientistas que est�o trabalhando nisso pretendem coletar amostras de DNA de mais de 400 grupos �tnicos isolados espalhados pelo mundo.
Eles v�o se concentrar naqueles que t�m maior probabilidade de serem facilmente distingu�veis: popula��es isoladas com culturas e l�nguas pr�prias, que j� estejam em perigo de extin��o.
Estima-se que o DNA de dois indiv�duos geneticamente n�o-aparentados seja entre 99,7% e 99,9% igual na sequ�ncia de pares-bases que formam o alfabeto do c�digo gen�tico.
Mas mesmo essa diferen�a significa que qualquer compara��o de mil pares-base ao longo de qualquer mol�cula de DNA pode revelar de uma a tr�s diferen�as.
Como a maioria dos genes � mais longa do que mil bases, pode haver v�rias diferen�as gen�ticas entre uma pessoa e outra em quase todos os 60 mil e 70 mil genes que se acredita hoje que as pessoas possuam.
A imensa maioria dessas diferen�as ser� "neutra" ou aparecer� em sequ�ncias n�o-codificadas -regi�es "silenciosas" do DNA que n�o produzem qualquer produto prot�ico- e, portanto, n�o ir�o produzir qualquer efeito f�sico.
Mas, entre a abund�ncia de varia��es, ser�o encontradas novas correla��es que podem dar a impress�o de fundamentar a legitimidade das categorias raciais.
� poss�vel que a varia��o gen�tica humana venha a ter implica��es pol�ticas mais amplas fora do sistema de justi�a criminal. Basta ver, por exemplo, o furor criado nos EUA sobre quem pode ser caracterizado como "norte-americano nativo" (ind�gena) ou n�o.
Mas quem � que pode ser qualificado como �ndio norte-americano "leg�timo"? J� faz muito tempo que o governo dos EUA "atesta" a identidade dos americanos nativos com base numa "propor��o sangu�nea".
Quando esses crit�rios foram introduzidos, na Lei das Aloca��es, promulgada em 1887, eles negaram o direito � terra �s pessoas que tinham menos de "metade de sangue" ind�gena, com isso possibilitando que as autoridades federais se apropriassem de milh�es de acres de terra "excedente" para uso de colonos "brancos".
O fato de o crit�rio de propor��o sangu�nea ter continuado a ser usado, mas hoje reduzido a "um quarto de sangue, j� provocou conflitos entre povos ind�genas que competem pelos benef�cios ligados ao reconhecimento federal.
Tamb�m obrigou muitas tribos a adotarem pol�ticas semelhantes, racializadas, para determinar quem faz parte delas, com isso deitando por terra os meios tradicionais de cria��o de novos la�os de parentesco, atrav�s de casamentos mistos, ado��o ou naturaliza��o.
A pol�tica do governo de exigir que os �ndios americanos apresentem "certificados de grau de sangue ind�gena", oficialmente reconhecidos, tamb�m levou ao surgimento de alian�as que atravessam as fronteiras tribais.
Alguns grupos come�aram a formar coaliz�es para se oporem �s pol�ticas federais e reivindicar o direito � auto-determina��o.
Na esteira da Lei de Arte e Artesanato Ind�gena, de 1990, a discuss�o pol�tica relativa � identidade ind�gena se intensificou.
Segundo essa lei, se um artista se identificar como ind�gena americano quando vende obras de arte ou se uma galeria exibe obras de arte identificando-as como "ind�genas", sem possuir o atestado federal que o identifica como ind�gena, isso � crime.
Desde que essa lei foi aprovada, artistas ind�genas med�ocres, mas identificados como ind�genas, denunciam artistas ind�genas que n�o possuem o atestado e que eles v�em como concorrentes.
A auto-proclamada pol�tica de identifica��o ind�gena j� come�ou a espalhar boatos e alega��es esp�rias, em campi universit�rios e outras institui��es, sobre pessoas que ela afirma serem impostoras e que estariam se fazendo passar por �ndios de verdade.
No meio desse campo minado pol�tico, � poss�vel que cheguem dados gen�ticos sobre as frequ�ncias de sequ�ncias gen�ticas espec�ficas naqueles que se afirmam ind�genas norte-americanos.
O resultado talvez seja a cria��o de novos crit�rios para classificar as pessoas como ind�genas norte-americanos "leg�timos" -ou seja, novas maneiras de decidir quem "cabe" ou n�o dentro dessa categoriza��o.
Ser� que a mesma hist�ria infeliz ser� repetida pelo mundo afora, quando o "genoma humano" se tornar um livro aberto e todos n�s possamos ler nossas origens ancestrais em nossos genes?
Poucos comentaristas contempor�neos duvidam que os frutos do projeto genoma humano ir�o, com o tempo, reestruturar radicalmente nossa percep��o do que ou de quem somos.
� f�cil visualizar a biologia molecular tanto desestabilizando as fronteiras existentes entre as ra�as, quanto definindo novas fronteiras, e, no decorrer desse processo, possivelmente criando novas hierarquias baseadas em genes "superiores" e "inferiores".
� f�cil tamb�m imaginar que os dados sobre varia��es gen�ticas possam se transformar em novo instrumento de repress�o de regimes interessados em cometer genoc�dio ou "limpeza �tnica".
No entanto, se utilizados de outras maneiras, os dados do projeto genoma humano aprofundariam nossa compreens�o do que significa ser "europeu", "brit�nico", "branco" ou "negro".
Poderiam at� mesmo nos encorajar a come�ar a celebrar nossa mistura gen�tica. � isso que Salman Rushdie, que descreve seu livro "Os Versos Sat�nicos" como "uma can��o de amor a nossos eus vira-latas", nos exorta a fazer.
Afinal, diz Rushdie, "miscigena��o mistura um pouco disso e daquilo: � assim que as coisas novas aparecem no mundo".

Tradu��o de Clara Allain

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