S�o Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 1995
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Vargas llosa reflete sobre suas cria��es

DO "EL PA�S"

O escritor peruano Mario Vargas Llosa est� hoje na Espanha para receber, das m�os do rei Juan Carlos, o pr�mio Miguel de Cervantes.
O pr�mio � concedido pelo conjunto da obra de um escritor, e � a mais importante premia��o das letras espanholas.
Nessa entrevista Llosa fala de seu mestre Willian Faulkner, do escritor colombiano Gabriel Garc�a M�rquez e de seu processo de cria��o.

Pergunta - Uma das particularidades de sua obra � que sua escrita transcorre com suavidade, como se o sr. tivesse uma enorme facilidade para contar coisas.
Resposta - � interessante o que voc� diz, porque n�o tenho facilidade. Admiro isso muit�ssimo. Esse tipo de facilidade � inconceb�vel para mim. Ela n�o acontece comigo, sequer em meus artigos. Quando escrevo um artigo, tenho que reescrev�-lo.
Nunca vou me esquecer de que ouvi Julio Cort�zar dizer que escreveu "O Jogo da Amarelinha", um livro t�o elaborado, sentando-se cada manh� diante da m�quina de escrever, sem saber o que iria acontecer.
Pergunta - Ser cada vez mais lido e ter se tornado famoso aumentou essa dificuldade?
Resposta - Sempre foi igual, desde o primeiro trabalho. A �nica diferen�a � que quando comecei a escrever meus primeiros contos, minha inseguran�a era terr�vel porque eu n�o sabia se iria termin�-los. Agora sei que se insisto, que se trabalho, quebro a cabe�a, acabam saindo.
Pergunta - Quando o sr. come�a um livro, tem toda a estrutura pronta, o livro completo?
Resposta - Tenho algumas id�ias, �s vezes um personagem, um ambiente. Fa�o muitas fichas, fa�o anota��es. Nunca come�o a redigir sem ter um esquema. Melhor dizendo, algumas trajet�rias.
Pergunta - O sr. � disciplinado no trabalho?
Resposta - Muito. Como n�o tenho facilidade, tenho que ter disciplina. N�o posso esperar o arroubo, por assim dizer, chegar. Tenho que procur�-lo, e me custa sangue, suor e l�grimas criar esse clima a que chamam inspira��o. Para mim � um trabalho artesanal.
Pergunta - William Faulkner foi para o sr. um guia. O escritor-chave. Juan Benet, a quem acontecia o mesmo, certa vez abriu um livro de Faulkner, leu um par�grafo e disse que a beleza do texto o havia impedido de escrever durante anos.
Resposta - Faulkner foi o primeiro escritor que li com l�pis e papel, fascinado por suas estruturas, como organizava o tempo, os pontos de vista, por como o narrador se revezava entre diferentes personagens. Por sua maneira de ocultar dados para criar determinados climas.
Faulkner exerceu uma influ�ncia enorme sobre mim, sobretudo na �poca em que eu era estudante universit�rio, quando o descobri.
Pergunta - Foi com ele que o sr. aprendeu a n�o ser o que o sr. chama de escritor "tel�rico?
Resposta - Exatamente. Cresci num mundo marcado por essa id�ia completamente ing�nua de que se voc� tem um bom tema, se uma hist�ria � original o romance j� est� 90% garantido.
Lendo Faulkner, voc� se d� conta de que todos os temas s�o bons ou maus, que n�o depende do tema, e sim de seu tratamento, do que voc� faz com ele. Da linguagem com que voc� conta a hist�ria, da maneira como a conta e, sobretudo, do tempo. Voc� v� a import�ncia decisiva da narrativa.
Pergunta - O sr. disse que a literatura hispano-americana tem seu precedente nas cr�nicas da conquista da Am�rica.
Resposta - Sim. A mesma imagina��o, a fantasia. Claro. Porque nas cr�nicas h� essa confus�o, essa mistura do real e do fant�stico, do mundo objetivo e do mundo m�tico ou lend�rio. � a mesma coisa que acontece num ramo muito rico da literatura hispano-americana, sobretudo em Garc�a M�rquez e Alejo Carpentier.
Pergunta - O sr. foi um dos protagonistas do "boom da literatura hispano-americana. Sempre acontece que de repente surgem uma s�rie de figuras brilhantes e depois nada, como se a safra tivesse secado. Isso acontece por acaso?
Resposta - � estranho. H� per�odos que s�o privilegiados para as artes pl�sticas, para a poesia ou para a m�sica; ou para um g�nero, como o romance. Sempre acontece isso e a coisa se produz em circuitos que parecem muito arbitr�rios. Acredito que no caso do romance talvez exista uma certa explica��o.
Quando uma sociedade vive momentos de estabilidade, sua produ��o de romances n�o costuma ser muito rica.
Mas quando passa por um momento de decad�ncia violenta ou colapso, a produ��o cresce.
Quando as pessoas se sentem inseguras, cria-se uma necessidade dessas ordens artificiais que s�o os romances. Mas isso tamb�m deve ser visto como tend�ncia, j� que na literatura, na arte, n�o existem leis.
Pergunta - O sr. j� figura na hist�ria da literatura, mesmo que nunca mais escreva nada. Isso � reconfortante?
Resposta - N�o, a n�o ser que voc� se considere uma est�tua petrificada, olhando para seu passado. Todo escritor deseja continuar escrevendo e que seus melhores livros sejam aqueles que ainda n�o escreveu.
Pergunta - Essa � uma aspira��o cheia de d�vidas?
Resposta - Nunca se sabe. A hist�ria n�o est� escrita, est� por fazer, e portanto tudo pode acontecer, inclusive que o que eu escreva agora seja o melhor que venha a escrever em minha vida.
Essa id�ia de Rimbaud, por exemplo, um g�nio quando adolescente e de repente esse fogo sagrado se apaga, e passa a ser outra pessoa j� n�o interessante.
Pergunta - O sr. sabe quais s�o seus melhores romances?
Resposta - Sei os que me custaram mais trabalho e que eu gostaria que fossem os melhores: "Conversas na Catedral e "A Guerra do Fim do Mundo.
No entanto, para surpresa minha, o que fez mais sucesso e que foi mais traduzido � "Tia J�lia e o Escrevinhador. "Conversas na Catedral foi muito menos lido. Foi trabalhoso escrev�-lo.
Eu tinha tudo: o tema, o clima, a �poca, uma sociedade em processo de decomposi��o, mas eu n�o encontrava uma arma��o para dar coer�ncia aos personagens.
Pergunta - O sr. quis ser presidente do Peru porque j� n�o se divertia tanto escrevendo, porque desejava algo novo?
Resposta - Em nenhum momento eu senti que estava cansado da literatura. Digamos que a pol�tica foi como procurar um tipo de fantasia diferente, mas sempre continuei me sentindo escritor e inclusive me angustiava, pensando que quando vencesse as elei��es, iria passar anos fora da literatura.
Pergunta - � curioso que depois de viver fora do Peru por tantos anos, depois de seu distanciamento, o sr. tenha desejado chegar a ser seu dirigente. Foi uma tenta��o de criar um desses mundos dos quais se escreve nos romances?
Resposta - Sim, porque voc� vive num mundo de palavras, de fantasmas. Desde jovem, sempre me senti fascinado pela hist�ria se fazendo, e o fato de v�-la de perto, viv�-la, me sentir no centro dessa vida florescendo nas ruas, nesse mundo da pol�tica ativa, foi para mim, sem d�vida alguma, uma coisa muito fascinante.
Pergunta - O sr. acha que � uma boa coisa que se pe�a aos escritores hispano-americanos, ou que eles assumam, algo mais que uma cr�tica ao poder? E sobre Garc�a M�rquez?
Resposta - Acho que se concede ao escritor uma esp�cie de mandato que n�o se justifica. Por fazer literatura deviam dar conselhos sobre moral, sobre religi�o, sobre pol�tica. Uma tradi��o que se manteve na Am�rica Latina.
Por outro lado, est� bem que a literatura se contamine, que seja algo mais do que um jogo puramente intelectual.
Pergunta - Eu gostaria de saber se o sr. e Gabriel Garc�a M�rquez se reconciliaram.
Resposta - N�o, n�o o vejo h� muitos anos. Mas leio seus livros.
Pergunta - O que o sr. acha de seu �ltimo livro?
Resposta - Muito bem escrito. Gosto mais de outros livros dele, mas sempre � divertido esse jogo da imagina��o, o brilhantismo.
Me parece menos rico, menos ambicioso que outros, mas muito �gil, com essa prosa elegante que se l� com muito prazer.
Garc�a Marquez � um caso interessante; como diz Jorge Edwards num ensaio, em sua vida privada est� muito comprometido com uma causa, que n�o � a minha e que eu critico, mas quando escreve faz uma literatura mais de fantasia; � um literatura menos engajada do que se possa imaginar.
Pergunta - Em "Cem Anos de Solid�o?
Resposta - N�o. Nesse livro a grandeza est� no fato de que ao mesmo tempo que � fantasia e imagina��o efervescente, tem suas ra�zes mergulhadas numa problem�tica hist�rica, social e pol�tica, na qual se reconhece a Am�rica Latina e o mundo contempor�neo.

Tradu��o de Clara Allain

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