S�o Paulo, domingo, 29 de maio de 1994
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Romantismo nasce do amor sombrio de Werther

MARCO GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

J� nas primeiras p�ginas Werther anuncia seu dilema central: Ser� poss�vel amar de acordo com os "preceitos humanos", conforme as regras da sociedade? O jovem burgu�s, espelhando o pr�prio autor, parece selar o seu destino ao dizer que seria imposs�vel amar assim, pois o "amor ir� se acabar, o mesmo podendo se dizer de sua arte, se ele for um artista". O amor para Werther � sin�nimo de liberdade, liberdade que n�o pode confinar-se aos "preceitos" ditados pela raz�o: "Sinto-me do mesmo modo certas vezes: queria abrir uma veia e assim alcan�ar a liberdade eterna".
Escrito em menos de tr�s meses, de janeiro a abril de 1774, publicado no mesmo ano e traduzido para o franc�s j� em 1775, o livro foi mal recebido pela cr�tica, fazendo, entretanto, sucesso imediato junto ao p�blico (uma s�rie de suic�dios alastra-se pela Europa ap�s sua publica��o). Isto � perfeitamente compreens�vel se considerarmos que o livro representava uma verdadeira afronta ao esp�rito iluminista da �poca (Aufkl�rung). Com Werther, poder�amos chegar a dizer, nasce o romantismo.
Por�m a grandeza do livro est� na ambiguidade do texto, na tens�o instaurada entre atitudes muito diferentes: se Werther � um rom�ntico, Goethe � um cl�ssico. Em uma de suas conversas com Eckermann, em 2 de janeiro de 1824, cinquenta anos ap�s ter escrito Werther, comenta a respeito do livro: "De resto, eu o li uma �nica vez, desde que apareceu, conforme j� declarei, e evitei repeti-la. S�o fogos de artif�cio! Sinto verdadeiro pavor de voltar ao mesmo estado patol�gtico de que o livro resultou." A forma epistolar do romance, nos diz a tradutora no pref�cio, permite que as cartas oscilem entre o relato objetivo e uma subjetividade l�rica. � por isso que a escrita oscila entre a primeira e a terceira pessoa.
Madame de St�el, amiga de Goethe, e que chegou a dizer "Werther fez �poca em minha vida", define melhor do que ningu�m o g�nio destrutivo do autor: Goethe possui sozinho os tra�os principais do g�nio alem�o. Ele se diverte ao romper os fios que ele mesmo teceu, ao frustrar as emo��es que excitou, ao derrubar est�tuas que nos fez admirar... Quando inspira nosso interesse por um personagem, logo nos mostra as suas inconsequ�ncias, assim nos desestimulando. Do mesmo modo que a natureza, acredita que � forte o bastante para introduzir o g�nio destruidor em suas pr�prias obras."
O amor de Werther � puro, mas tamb�m corrompido, doentio. Carlota chega mesmo a dizer: "Temo, temo que seja apenas a impossibilidade de me possuir que torna esse desejo t�o ardente." Em outro romance de Goethe, "As Afinidades Eletivas" o amor tamb�m s� parece surgir onde n�o deve, onde n�o � socialmente conveniente. Os impulsos naturais, as "afinidades eletivas" �termo qu�mico� parecem estar sempre em conflito com as regras estabelecidas. O amor para Goethe � algo perverso, diab�lico, f�ustico.
Assim como no segundo Fausto, assistimos aqui a passagem do "subjetivo" ao "objetivo", da paix�o individual ao amor universal. A parte final, explicitamente aleg�rica, indica esse movimento. � interessante notar que a �nica sa�da para uma paix�o desenfreada num mundo burgu�s comedido � a cria��o po�tica. � a arte que nos permite extrapolar "qualquer interfer�ncia subjetiva", fazendo-nos "ater exclusivamente � natureza. Somente ela � infinitamente rica, e s� ela forma o grande artista". Se o artista, como vimos no in�cio, deve evitar a "exist�ncia tranquila", saber amar apaixonadamente, deve tamb�m ter o distanciamento necess�rio para transformar sua paix�o em obras, algo universal.
Resta-nos dizer algo a respeito dessa nova tradu��o de "Werther". Pelo que pude comparar com o original a tradu��o me parece bastante boa; o texto, al�m de ser fiel, flui sem problemas. O pref�cio da tradutora tamb�m � interessante. Em suma, esta nova edi��o da Martins Fontes, com uma capa inspirada em Caspar David Friedrich, merece a mesma acolhida que a obra teve no ano de sua publica��o original.

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