S�o Paulo, domingo, 11 de dezembro de 1994
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As vozes celestiais da desraz�o

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma jovem de 14 anos anuncia que est� ouvindo vozes celestiais e que tem uma importante miss�o a cumprir como chefe de tropas. O que acontece a esta mo�a?
Depende. Se a �poca � a atual, e se ela vive numa grande cidade, � bem poss�vel que seja encaminhada a tratamento psiqui�trico e, quem sabe, hospitalizada. Mas se vive no s�c. 15 e se chama Joana D'Arc, falar� com o rei, receber� o comando das tropas e, muito depois de morta, ser� canonizada.
Doen�a mental tem hist�ria. � o que mostra, com brilho e compet�ncia, Isaias Pessotti (professor de psicologia da USP em Ribeir�o Preto) em "A Loucura e as �pocas". E a hist�ria da doen�a mental tem fascinado e motivado v�rios autores �a obra de Foucault vindo imediatamente � lembran�a.
S� que Pessotti (que foi o ganhador do pr�mio Jabuti de 1993, com o romance Aqueles C�es Malditos de Arquelau) evitou a abordagem historiogr�fica cl�ssica. Preferiu um enfoque mais original e mais f�rtil: "o levantamento de trechos expressivos de v�rias obras que se ocuparam explicitamente em caracterizar ou explicar a loucura". Os textos s�o agrupados segundo tem�tica e cronologia. Correspondem mais ou menos � divis�o da hist�ria que aprendemos no col�gio �antiga, medieval, moderna e contempor�nea.
Pessotti, por�m, n�o se limita a fazer um relato factual. Vai mais fundo, bem mais fundo. Na primeira parte (Antiguidade), recorre a Homero e Hes�odo para mostrar como, segundo a "Il�ada", "os deuses podem transformar em n�scio o homem mais sensato". Para Homero, diz Pessotti, o modelo da loucura � mitol�gico, teol�gico: "Os her�is hom�ricos n�o enlouquecem, s�o tornados loucos pelas decis�es da divindade".
Caberia a Freud, analisando o �dipo, mostrar que a "divindade" � apenas uma parte do nosso aparelho ps�quico. Antes disto, por�m, Hip�crates desmistificaria o car�ter sagrado da doen�a. Doen�as como a epilepsia, diz o "pai da medicina", "foram sacralizadas por (...) magos, purificadores, pedintes e charlat�es".
A medicina grega foi incorporada pelos romanos, dentro da orienta��o hipocr�tica. Para Galeno, a doen�a mental afeta uma das tr�s capacidades da alma: a fantasia (phantastik�), a racional ou a mnem�nica. Como exemplo da primeira, ele cita um melanc�lico que "se imaginava feito de conchas e (...) evitava todos os transeuntes, com medo de ser esmigalhado."
No fim da Idade M�dia, surge o manual que vai ensinar inquisidores e eclesi�sticos a lidarem com a possess�o diab�lica: o famoso "Malleus Maleficarum". Muitas bruxas foram queimadas por causa da persegui��o religiosa. Que tinha uma raz�o hist�rica: o ocultismo muitas vezes desempenhava um papel subversivo �era o disfarce sob o qual se apresentavam as id�ias da modernidade. A alquimia introduzia a qu�mica, a astrologia era precursora da astronomia �e a bruxa, mulher desabrida e desafiadora, antecipava a liberaliza��o dos costumes na Renascen�a.
A Idade Moderna vai medicalizar a doen�a mental. No s�culo 17 surge o conceito de aliena��o, que possibilitaria, por sua vez, a emerg�ncia do alienista, t�o bem retratado por Machado de Assis. O alienismo significa autoritarismo e, ainda que a loucura seja considerada, dentro da linha hipocr�tica e gal�nica, um fen�meno natural, o resultado final � o confinamento: como diz Foucault, j� n�o se podia mais tolerar o louco vagando pelas ruas, dando mau exemplo �queles que eram obrigados a trabalhar.
O gesto misericordioso de Pinel, liberando os doentes mentais das cadeias (uma consequ�ncia dos ideais da Revolu��o Francesa) n�o foi suficiente; embora se multiplicassem os diagn�sticos �chegando a uma verdadeira f�ria taxion�mica�, os recursos terap�uticos continuavam constrangedoramente pobres. Procurava-se, por exemplo, "chocar" o paciente, jogando-lhe �gua fria ou simulando arroj�-lo do alto de uma torre.
Com Pinel, termina "A Loucura e as �pocas", que j� nos faz antecipar uma continua��o. Particularmente, li este livro com tr�plice prazer: como curioso, como m�dico e como escritor. Trata-se de uma obra que d� nova dimens�o ao tema, valorizada inclusive por boas ilustra��es.

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