S�o Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Imagina��o er�tica se baseia no excesso

ELIANE ROBERT MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

No s�culo 12, um obscuro cl�rigo franc�s da corte de Troyes, conhecido como Andr� o Capel�o, lan�ou-se � tarefa de escrever um tratado sobre a arte de amar. Seu modelo era a "Ars Amatoria" de Ov�dio que, introduzida na �poca atrav�s da tradu��o de Chr�tien de Troyes, encantava os iniciados na er�tica cort�s, t�o afeitos �s codifica��es dos procedimentos amorosos. Embora n�o superando o cl�ssico latino, como pretendia o autor, "De Amore" tornou-se refer�ncia fundamental tanto para os contempor�neos do Capel�o como para as gera��es seguintes, cada vez mais �vidas por conhecer os segredos do "sapienter amare".
Se esse livro � hoje considerado um dos primeiros tratados er�ticos do Ocidente � porque ele tem o m�rito de antecipar uma s�rie de teorias, cujo florescimento os s�culos posteriores iriam assistir. E dessas teorias, a mais importante talvez seja aquela que vai buscar os fundamentos da er�tica na imagina��o: logo no primeiro cap�tulo, Andr� o Capel�o define o amor como "immoderata cogitatio", isto �, medit ��o excessiva inspirada pela vis�o de um ser sedutor. Com essa f�rmula o autor inaugura aquele que poderia ser a m�xima do erotismo ocidental desde a Idade M�dia: "Amo, logo penso."
Ou neto, "amo, logo escrevo", j� que as afinidades entre o amor e a literatura repousam em grande parte nesse pressuposto da imagina��o criadora. Dante, escrevendo sua obra sob o impacto da vis�o iluminada de Beatriz, � certamente o exemplo mais belo e bem acabado dessa teoria. Podemos revisit�-la tamb�m em Stendhal, grande apaixonado e te�rico das paix�es, que insistia na tese de que "o amor � um prazer da imagina��o". A atitude meditativa, todavia, n�o se circunscreve aos amores imposs�veis, como se poderia supor a partir dos exemplos do poeta italiano e do romancista franc�s. Iremos encontr�-la igualmente num autor mais mundano como La Rochefoucauld, cuja c�lebre suspeita de que muita gente n�o teria amado se n�o tivesse lido livros de amor � bastante conhecida; ou, ainda, num escritor pouco afeito a paix�es plat�nicas como Sade, que afirma atrav�s de um de seus personagens mais lascivos: "Toda a felicidade do homem est� na imagina��o".
Ora, a "Hist�ria da Literatura Er�tica" do surrealista Sarane Alexandrian, �que a Editora Rocco acaba de lan�ar em tradu��o de Ana Maria Scherer e Jos� Laur�nio de Mello� nos d� justamente a conhecer algumas das aventuras mais arriscadas da fantasia amorosa ou, se preferirmos, er�tica (j� que, pelo menos desde o s�culo 19, esses termos passaram a assumir significados um tanto distintos). Como livro de refer�ncia, cumpre satisfatoriamente o prop�sito de introduzir o leitor nas diversas formas que organizaram os textos licenciosos ao longo da hist�ria ocidental. Como cap�tulo da hist�ria da literatura, por�m, o trabalho de Alexandrian peca pela falta de defini��es precisas e de an�lises mais rigorosas em fun��o de resumos sucessivos e de uma fraseologia l�rico-surrealista um tanto excessiva. Mesmo assim a leitura desse volume � de interesse, sobretudo por nos obrigar a rever a pr�pria hist�ria da literatura e, consequentemente, a indagar sobre o estatuto liter�rio da fic��o er�tica. Vejamos rapidamente porque.
Sabemos que, de Plat�o a Bataille, de Sade a Freud, o erotismo tem sido concebido como a capacidade humana de prolongar a intensidade do desejo. Ora, se a fantasia � o combust�vel de toda fic��o, buscar a particularidade da imagina��o er�tica significa reconhecer as formas desse poder de multiplicar as imagens do desejo, submetendo-as a um jogo intermin�vel de espelhos que transformam, deformam ou ampliam tudo o que neles se reflete. Vertigem, excesso, desmedida �n�o importa que nome se d� a tal capacidade� esse � por excel�ncia o tra�o que distingue o imagin�rio licencioso.
Ler uma hist�ria de literatura er�tica �, portanto, ler a hist�ria desse excesso. O fato de nos depararmos com um grande n�mero de escritores, muitos deles desconhecidos, n�o nos impede de reconhecer nela uma tradi��o. Pelo contr�rio: acompanhando os diversos cap�tulos dessa hist�ria percebemos claramente como uma tradi��o de escritura do excesso se consolidou e se atualizou no Ocidente (ainda que, quase sempre, na clandestinidade). Sua geografia, ao longo desses s�culos, n�o � particularmente m�vel: Alexandrian lembra, e com raz�o, que a literatura er�tica tem como ber�o a Europa, e que at� o s�culo 17, a maior parte dos chamados livros licenciosos era produzida na It�lia ou na Fran�a. A Inglaterra e Alemanha s� come�aram a desenvolver seu erotismo liter�rio nessa �poca, e os outros pa�ses europeus n�o possuem um conjunto de obras de relevo, embora algumas sejam not�veis como � o caso da "Venus Batava", texto holand�s do s�culo 17, dos poemas picarecos de Quevedo ou dos versos sat�ricos de Bocage, entre outros.
Se a fic��o er�tica ocidental � nitidamente mercada por autores italianos e franceses �Boccaccio, Aretino, La Sale, Brant�me, Baffo, Apollinaire�, talvez seja por sua filia��o � antiguidade latina. Sabemos que, entre os escritores libertinos do s�culo 17 e 18, a leitura de Lucr�cio era indispens�vel; n�o s�o poucas as tradu��es francesas do "De Natura Rerum" no per�odo. Al�m dele, Catulo, Hor�cio, Ov�dio ou os poetas an�nimos da "Priap�ia" foram fontes decisivas para os escritores de l�ngua latina que se dedicaram ao tema do erotismo; foi contudo no "Satyricon" de Petr�nio e no "Asno de Ouro" e Apuleio que a escritura do excesso afirmou definitivamente suas origens.
Na Fran�a, h� pelo menos dois grandes autores qeu fizeram da desmedida a ess�ncia de sua obra, seguindo e renovando essa tradi��o. Herdeiro de Apuleio, o renascentista Rabelais inventou o "pantagruelismo", que definiu como a arte do exagero na bebedeira, na glutoneria e na devassid�o. Basta lembrarmos a descri��o do nascimento de Gargantua, expelido pelo reto da m�e junto da mat�ria fecal produzida por uma excessiva quantidade de tripas que ela havia ingerido, para nos darmos conta de seu esp�rito hiperb�lico. Mas a genialidade de Rabelais foi tamb�m a de estender tais exageros � linguagem, inovando os "erotica verba" com um vasto vocabul�rio que enfatizava a bestialidade do ato sexual e inventando termos burlescos que ampliaram de forma definitiva a liberdade de express�o sexual.
Tamb�m Sade representou um marco na hist�ria da literatura licenciosa, multiplicando as imagens da desmedida, numa forte sintonia com a heran�a deixada por Petr�nio. O marqu�s inaugurou o que poder�amos chamar de moderna fic��o er�tica com seu primeiro romance, "Os 120 dias de Sodoma", escrito na Bastilha �s v�speras da Revolu��o Francesa. Nesse livro ele explicitou as bases de seu sistema filos�fico atrav�s da progress�o de 600 paix�es sexuais classificadas em quatro classes �simples, complexas, criminosas e assassinas�, desconcertando o leitor com uma reflex�o cujo �nico ponto de sustenta��o � o desejo.
Nenhum termo caberia t�o bem para expressar a imagina��o de autores como Rebelais ou Sade como o "immoderata cogitatio" de Andr� o Capel�o. Isso porque, n�o obstante tratar-se de erotismo, o excesso que caracteriza esse tipo de obra n�o � sexual; � excesso de pensamento. Ou, como bem definiu Robert Desnos, nos anos 20, a er�tica � "um retiro espiritual, onde o amor � ao mesmo tempo puro e licencioso no absoluto". Podemos compreender melhor essa id�ia de medita��o excessiva ou de esp�rito absoluto quando atentamos para a singularidade da literatura er�tica: ao submeter a refer�ncia sexual a uma estiliza��o, ela liberta-se das limita��es emp�ricas que a mat�ria carnal imp�e para ampliar � vontade as potencialidades imagin�rias do desejo.
Susan Sontag caracteriza a "imagina��o pornogr�fica" como uma forma particular de consci�ncia que transcente as esferas sociais e psicol�gicas. A fic��o er�tica, diz ela, aciona estados extremos do sentimento e da consci�ncia humana, visando desorientar o sujeito, desloc�-lo mental e fisicamente. Por isso os textos obscenos seriam portadores de um certo princ�pio de convers�o do leitor, semelhante ao que encontramos nas literaturas de cunho eminentemente religioso. Com efeito, sabemos que o pr�prio exerc�cio da censura sempre se baseou numa for�a de convic��o do livro licencioso n�o muito distante dessa id�ia.
Ora, se tal princ�pio for efetivamente operante, fica imposs�vel falar de fic��o er�tica enquanto g�nero, pois o projeto de convers�o suposto na sua leitura se imporia a qualquer conven��o ou norma liter�ria. Ent�o, s� se pode definir o erotismo como um tema que coloca um problema est�tico particular, na medida em que privilegia as formas do excesso e, assim, viabiliza a passagem de uma consci�ncia "social" para outra, perturbadora.
Dir�amos ainda mais: um tema que coloca uma quest�o filos�fica maior, posto que abre ao pensamento a possibilidade cont�nua de alargar a escala humana para al�m da vida em sociedade. O repert�rio de subtemas que o erotismo aciona �bestializa��o, viol�ncia, perda de si no outro, etc.�, seja de forma tr�gica ou c�mica, aponta para essa constante problematiza��o da no��o de homem e de humanidade. N�o � pouco, pois, o que a literatura er�tica tem a oferecer para a filosofia: sob o ardiloso disfarce da fic��o, ela guarda uma mem�ria antiga, a nos lembrar que os excessos do cogito t�m algo a ver com as puls�es do corpo.

A OBRA
Hist�ria da Literatura Er�tica, de Sarane Alexandrian. Tradu��o de Ana Maria Scherer e Jos� Laur�nio de Mello. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5.� andar, Rio de Janeiro, CEP 2011-040, tel. 021 507-2000, fax 021 507-2244). 439 p�gs. CR$ 10.990

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