Como vivem as crianças xambás, que vão ao culto e tocam música fora da escola

Terreiro em quilombo de Pernambuco é usado em atividades educativas para os pequenos preservarem tradições africanas

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Adriana Amâncio
Recife

No Brasil, há uma nação de pessoas que descendem diretamente do povo africano iorubá xambá (pronuncia-se tchan bá). Eles vivem no Portão do Gelo, que é um quilombo urbano no bairro de São Benedito, em Olinda, no estado de Pernambuco.

Nesse terreiro eles seguem à risca a doutrina da sua nação, sem influência de qualquer outro povo. Para manter as tradições em meio a uma grande metrópole, eles investem no ensino às crianças.

Yago participa de cultos, tocando o tambor no Terreiro Xambá em Olinda
Yago participa de cultos, tocando o tambor no Terreiro Xambá em Olinda

Desde 2022 existe ali o Memorial Mãe Biu, que reúne livros, objetos e instrumentos musicais históricos, usados em atividades educativas antes ou depois dos pequenos xambás irem à escola. Além do contato com a história da nação, no local eles também participam de cultos sagrados.

Yago A., de seis anos, é membro da nação xambá e assiste a aulas no memorial, levado pela mãe, Rosilene, de 44 anos. Ele nos conta que conheceu os ritos do seu povo e, por isso, já sabe quem são os seus orixás, as divindades espirituais que protegem os membros de uma religião de matriz africana.

"Pela manhã, o historiador Hildo passeia com a gente pelo memorial, ensinando tudo. No domingo à tarde, tem o toque [cerimônia religiosa], que é quando a gente toca os tambores", diz Yago.

Ele já consegue identificar os instrumentos adequados e tocá-los, com a permissão do pai de santo.

"Esse aqui é o bombo pequeno que a gente usa para tocar. Esse aqui é o abê. Esses aqui são os bombos de Ogum, Xangô e Ians�� [divindades]", diz, vestido de branco. O abê é um instrumento musical que tem formato de cabaça, é coberto por uma rede formada por miçangas e produz um som marcante ao ser chacoalhado.

O menino diz que a música é um dos aprendizados preferidos. "Eu quero continuar tocando até crescer", diz. O memorial recebe caravanas de escolas públicas e privadas vindas dos diversos cantos da região.

A tradição dos xambás também abrange conhecimento medicinal. Eles costumam usar ervas no tratamento de algumas doenças. Muitas crianças, quando sentem febre, dor de cabeça ou outros sintomas são tratadas na própria comunidade.

"A gente usa colônia e, às vezes, toma banho e bebe a água do orixá", explica. Os xambás costumam encher uma jarra de barro com água e deixar aos pés das divindades e consagrar em oração. Essa água é considerada sagrada e é usada como parte do tratamento de algumas doenças.

Adoni O., de dez anos, nasceu no Quilombo Portão do Gelo. Ele é filho de Tila, de 37 anos, que tem outros três filhos, todos batizados nas tradições xambás. Mesmo tendo passado pela biblioteca e pelo conjunto de objetos e peças históricas do povo, ele conta que foi a música que conquistou o seu coração.

Para ele, o momento mais aguardado do ano é o Toque dos Erês, um culto especial voltado a crianças, que acontece sempre no mês de setembro. "Quando eu crescer, quero continuar tocando no terreiro, não quero ser pai de santo, porque é muito trabalho", diz o menino.

Adoni e a sua mãe, que frequentam os cultos juntos no Terreiro Xambá
Adoni e a sua mãe, que frequentam os cultos juntos no Terreiro Xambá

As crianças xambás não têm aula de música. Eles aprendem observando os mais velhos tocarem os ilus [tambores] nas cerimônias. Para esse povo, a música tem um papel importante, de adoração aos orixás e divulgação da cultura.

"Eu faço parte do Grupo Miudinho da Xambá. Agente já se apresentou no Carnaval e na faculdade. O pessoal dançou coco com a gente tocando", diz Adoni.

As aulas no memorial também influenciam na forma como as crianças xambás brincam. Por lá, é raro usarem redes sociais. A diversão é brincar de fazer culto. "A gente sai tocando na rua, a gente brinca com a nossa cultura. Quando a gente não está brincando assim, está brincando de jogar bola", diz Adoni.

Especialista em educação global, a professora Lara Crivelo, da Unesp, diz que essa formação de fato ajuda a preservar a cultura xambá. "Quantas culturas não foram extintas porque não houve o cuidado de preservá-las? Essas crianças estão mantendo o legado, que poderia estar perdido no tempo."

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