Pensata

H�lio Schwartsman

02/05/2002

O eterno retorno do mesmo

"E se um dia ou uma noite um dem�nio se esgueirasse em tua mais solit�ria solid�o e te dissesse: Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, ter�s de viv�-la ainda uma vez e ainda in�meras vezes: e n�o haver� nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que h� de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida h� de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequ�ncia." � dif�cil resistir � tenta��o de lembrar essa passagem de Nietzsche ("Gaia Ci�ncia", IV, 341) sobre o eterno retorno para comentar um novo modelo cosmol�gico proposto por Paul Steinhardt, da Universidade de Princeton (EUA), e Neil Turok, do Centro para Ci�ncias Matem�ticas, em Cambridge (Reino Unido).

Os dois cientistas publicaram na "Science" da semana passada um artigo em que sugerem um Universo c�clico, no qual haveria sequ�ncias intermin�veis de Big Bangs (grandes explos�es) alternados por Big Crunchs (grandes esmagamentos).

As hip�teses propostas por Steinhardt e Turok encerram muita especula��o (mais do que o normal mesmo em cosmologia, j� o mais especulativo dos ramos da f�sica) e v�o contra a id�ia largamente aceita de que um �nico Big Bang, a explos�o primordial, deu origem ao Universo.

N�o pretendo, por incompet�ncia na mat�ria, alongar-me em discuss�es t�cnicas sobre a consist�ncia de um Universo c�clico. Interessa-me apenas o modo como cientistas tratam teorias rivais.

H� dois anos, em abril de 2000, cientistas do grupo do italiano Paolo de Bernardis, da Universidade de Roma, anunciavam -at� com alguma exalta��o- que haviam colhido ind�cios altamente convincentes em favor do modelo de um Universo em expans�o eterna, o Big Bang �nico e sem Big Crunch.

Varia��es m�nimas na temperatura da radia��o c�smica de fundo indicaram que n�o existe mat�ria suficiente no Universo para que a for�a da gravidade provoque o colapso de suas estruturas. O Universo seria assim plano, infinito e se expandiria indefinidamente. A hip�tese do Big Crunch parecia mais afastada. Esse ainda � o modelo que podemos chamar de "oficial".

J� a id�ia de Universo c�clico de Steinhardt e Turok opera com outros pressupostos. Ele utiliza em seus c�lculos o conceito de energia escura. Ningu�m sabe ao certo o que � a energia escura nem como ela atua, mas o fato � que ela est� l�. J� foi detectada empiricamente.

Sabemos, pelos c�lculos de De Bernardis, que a gravidade interagindo com toda a mat�ria existente n�o teria for�a suficiente para provocar um Big Crunch. Mas, se acrescentarmos ao conjunto essa tal da energia escura -desde que ela atue como os pesquisadores acham que ela atua-, ent�o o modelo ganha consist�ncia.

O bonito nas teorias cosmol�gicas � que, ao mesmo tempo em que elas s�o ci�ncia em estado bruto, aproximam-se das grandes mitologias fundadoras. Pelo lado do Universo c�clico, vale lembrar que os antigos eg�pcios j� falavam no eterno retorno do disco solar, das cheias do Nilo e das esta��es. A Lei de Thot proclama: "Tudo � ciclo".

Pelo Universo plano, fala a pr�pria Igreja Cat�lica. O Vaticano j� em 1951 afirmou que julgava a hip�tese do Big Bang v�lida e n�o violadora da verdade. Com efeito, o mundo criado por um evento singular se aproxima bastante da id�ia de um Demiurgo.

Mas as semelhan�as entre cientistas e religi�es logo cessam. Na ci�ncia, duas ou mais teorias rivais podem coexistir de modo mais ou menos sereno. Em religi�o, isso � bem mais dif�cil. Basta tomar o exemplo da dif�cil conviv�ncia entre judeus, crist�os e mu�ulmanos. E, vale lembrar, que esses tr�s grandes monote�smos cultuam o mesm�ssimo Deus, aquele que mandou Abra�o sair de Ur, na Cald�ia, em busca da Terra Prometida.

A diferen�a fundamental fica por conta do fato de que a ci�ncia prev� seu pr�prio erro. Em termos epistemol�gicos, mesmo a mais s�lida das "verdades" � provis�ria e est� sujeita a revis�o. A ci�ncia n�o tem a pretens�o de ser a express�o �ltima de uma verdade revelada e imut�vel.

� claro que alguns cientistas podem, individualmente, defender suas teorias mesmo contra todas as evid�ncias. Mas, nestes casos, eles est�o sendo mais humanos -e, portanto, teimosos- do que cientistas propriamente ditos.

No plano das religi�es, essa "toler�ncia" � bem mais dif�cil. � at� natural que seja assim. Um sistema de cren�as que visa � transcend�ncia teria dificuldades para admitir que toda verdade � prec�ria quase ao ponto de n�o ser mais reconhecida como verdade. Nessas condi��es, acho que seria extremamente dif�cil fundar uma moral. Para que ela soe convincente, a lei divina, o "n�o cobi�ar�s a mulher do pr�ximo", por exemplo, deve ser um mandamento que vale hoje, amanh� e sempre. A religi�o n�o apenas n�o admite o pr�prio erro como, segundo algumas leituras, exige que todos, mesmo os "infi�is", ajam segundo os seus ditames. � a receita para o conflito.

� nesse ponto que vale a pena investigar melhor o sentido do eterno retorno em Nietzsche. Trata-se, sem sombra de d�vida, de um dos t�picos mais fundamentais e tamb�m dif�ceis de sua filosofia. Ele se inscreve na guerra contra o cristianismo que o fil�sofo travava. "Grossissimo modo", enquanto o cristianismo op�e o tempo � eternidade para valorizar a �ltima, Nietzsche proclama a eternidade do pr�prio tempo.

Como o tempo jamais se esgota, nele ocorre tudo o que � poss�vel. Como ele ainda assim n�o se esgota, tudo o que � poss�vel se repete in�meras vezes num esfor�o para preencher o seu curso.

� aqui que entra o super-homem nietzscheano. S� ele, que j� compreendeu a morte de Deus, que sabe que n�o existem valores supremos, s� ele, que est� al�m do bem e do mal, vai ser capaz de dizer sim ao eterno retorno. Apenas o super-homem nietzscheano � capaz de aceitar como uma boa not�cia e n�o como uma tortura a id�ia de que est� condenado a reviver eternamente sua pr�pria vida, com "o que h� de indizivelmente pequeno e de grande".

H� a� uma nega��o radical da religi�o. Enquanto o cristianismo nos promete um outro mundo, o eterno retorno nietzscheano nos atira inapel�vel e infinitamente neste aqui. Com o eterno retorno, Nietzsche vai aos rec�nditos do Universo para afirmar que o mundo que conta � o daqui.

Receio que tamb�m a f�sica, quando entra em terreno t�o especulativo como o da cosmologia, acabe falando mais deste mundo -de nossas ignor�ncias e id�ias recorrentes- do que das origens do Universo como pretendia.

Por mais teorias cosmol�gicas que desenvolvamos, sempre ser� l�cito fazer novas e mais profundas indaga��es filos�ficas. Hoje perguntamos pelo que provocou a singularidade, pelo que gerou o ponto de densidade infinita que h� 14 bilh�es de anos houve por bem explodir dando origem a toda a mat�ria e a energia existentes. Amanh�, poderemos estar nos questionando pelo que deu causa � primeira de uma s�rie eterna de explos�es universais. Num certo sentido, n�o avan�amos tanto em rela��o ao primeiro fil�sofo que se perguntou -e n�o tinha como responder- pela origem de tudo.

H�lio Schwartsman � articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganist�o" em 2001. Escreve para a Folha Online �s quintas.

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