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A crise climática tem solução, diz diretor da SOS Mata Atlântica

Para Luís Fernando Guedes Pinto, desmatamento zero, restauração e agroflorestas podem transformar mata atlântica e outros biomas

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São Paulo

O agrônomo Luís Fernando Guedes Pinto costuma comparar a mata atlântica a um paciente que está na UTI. O bioma, que é o mais devastado do Brasil, conserva apenas 24% da cobertura vegetal original e só 12,4% de florestas maduras e bem preservadas, além de ter mais de 2.000 espécies de plantas e animais em risco de extinção.

O diagnóstico não é animador, mas, para Guedes Pinto, a doença tem cura. Segundo o diretor executivo da Fundação SOS Mata Atlântica, o remédio é, por um lado, zerar o desmatamento; por outro, promover a restauração em larga escala, recuperando até 15 milhões de hectares de floresta.

Luís Fernando Guedes Pinto, diretor executivo da Fundação SOS Mata Atlântica, na sede da instituição, na cidade de Itu (SP)
Luís Fernando Guedes Pinto, diretor executivo da Fundação SOS Mata Atlântica, na sede da instituição, na cidade de Itu (SP) - Divulgação/SOS Mata Atlântica

O ambientalista, que foi coautor de uma pesquisa recente sobre a viabilidade econômica da restauração em fazendas de café na mata atlântica, afirma que a meta não só é factível como pode ser atingida sem prejudicar o crescimento do agronegócio.

Na última semana, a fundação divulgou os dados anuais sobre desflorestamento da mata atlântica, que mostraram melhora significativa na parte contínua do bioma, inclusive em estados que costumam ser líderes de desmate.

Os avanços, porém, acontecem em meio a obstáculos, como uma série de projetos de lei que enfraquecem o licenciamento ambiental e a Lei da Mata Atlântica, apresentados no Congresso e em assembleias estaduais.

Outro desafio a ser enfrentado é o desconhecimento de muitos brasileiros sobre o bioma, mesmo que 70% da população do país vivam nele.

Nesta segunda-feira (27), Dia Nacional da Mata Atlântica, leia a entrevista concedida por ele à Folha.

Costumamos associar o aquecimento global a outros biomas brasileiros, como amazônia e cerrado. Qual é o papel da mata atlântica na crise do clima e em suas soluções?

Na época do Acordo de Paris [2015], falava-se só em mitigação, em cortar emissões, acabar com o desmatamento. E, diferentemente da amazônia, a contribuição do desmatamento da mata atlântica para o aquecimento global é pequena.

Porém, o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) apontou que, para chegar à meta de 1,5ºC [de aumento de temperatura], não é suficiente parar de emitir. É preciso remover gás carbônico da atmosfera em grande escala, e aí entra a agenda da restauração.

A mata atlântica é um dos biomas prioritários para restauração no mundo. É o hotspot número 2 de biodiversidade do planeta, o que significa que ela tem um grande número de espécies, muitas delas endêmicas (que só ocorrem ali), e um alto grau de ameaça de extinção dessas espécies.

70% da população e 80% do PIB do Brasil estão na mata atlântica, mas as pessoas não sabem que moram na área de mata atlântica. A mata atlântica oferece mais da metade da comida que vem para o nosso prato, é uma super produtora de commodities. Tudo isso depende da floresta para existir.

Pessoas que vivem nas cidades têm dificuldade de enxergar essa dependência da floresta? Esse é o nosso grande problema. Há uma grande desconexão entre a natureza e a vida das pessoas. Não entendemos que a água, a energia elétrica, a comida e que consumimos vem da natureza e que a qualidade de vida na cidade é afetada pelo que acontece na natureza.

Um grande desafio é a educação e a sensibilização. Também precisamos que as cidades sejam mais verdes. Do Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte, todas as capitais estão na mata atlântica, e grande dessas metrópoles perderam o verde. A gente precisa de muito mais parques para as pessoas perceberem a natureza.

É na mata atlântica que aconteceram muitas catástrofes climáticas recentes no Brasil, como as chuvas na região serrana do Rio e no litoral norte de São Paulo. Por quê? Porque na mata atlântica temos muitas cidades e pessoas em locais de risco. Mesmo no Rio Grande do Sul, grande parte do que está acontecendo pegou a mata atlântica, que ocupa 52% do estado. As áreas alagadas são as áreas de pampa, mas onde está caindo barreira, morro, é tudo mata atlântica.

Qual é a situação da mata atlântica no RS? É um dos estados que mais desmatou este bioma. Sobrou só 8%, abaixo da média nacional, que é de 12,4%, e bem abaixo dos 30% de cobertura florestal que é considerado o mínimo que deveria restar para manter a biodiversidade, para os bichos sobreviverem, as árvores brotarem.

Isso pode ter contribuído para a tragédia? Não dá para atribuir as chuvas ao desmatamento; isso é um processo planetário. Mas dá para atribuir a intensidade da tragédia ao desmatamento. Quanto mais natureza, maior a resiliência, a velocidade de recuperação. Se tivesse mais floresta lá, a gente não teria evitado a chuva, mas teria, talvez, diminuído o estrago e salvado vidas

Essa catástrofe pode ter aumentado a consciência da população sobre a relação de eventos extremos e as políticas ambientais? Essa tragédia está mostrando que a gente não tem planejamento, gestão, manutenção da política ambiental. A coisa está ficando cada vez mais escancarada. O cenário das projeções científicas está se confirmando e o negacionismo está cada vez mais isolado.

Temos uma nova oportunidade de reconhecer o valor da ciência, de pressionar por políticas ambientais. Mas a humanidade e a população brasileira têm a memória curta e têm desperdiçado essas chances. Além disso, a guerra de narrativas está correndo fortíssima.

A solidariedade no RS está incrível, mas ainda é cedo para concluir se isso vai elevar o patamar de entendimento sobre as tomadas de decisão nessa área ambiental.

A legislação ambiental brasileira tem boa reputação. Por que ela não protege nossos ecossistemas? A legislação ambiental brasileira é reconhecida internacionalmente como avançada. O Código Florestal e a Lei da Mata Atlântica são ótimos exemplos.

Mas a lei funciona de forma muito precária, os órgãos ambientais têm poucos recursos para fazer esse sistema funcionar. Falta fiscalização e punição: 90% do desmatamento na mata atlântica tem indícios de ilegalidade e isso é pouco fiscalizado e pouquíssimas multas são pagas.

Além disso, nossa legislação ambiental é atacada sistematicamente no Congresso e judicializada com frequência

Qual é sua avaliação das políticas ambientais do atual governo Lula? A troca de governo fez muita diferença para acabar com a expectativa de impunidade. É um governo que trouxe uma equipe relevante para o Ministério do Meio Ambiente, que não é negacionista do clima, mas que, por outro lado, tem tido dificuldade de levar isso para a prática.

O governo está perdendo feio no Congresso na questão ambiental, está cedendo muito ou tem pouca força. Há pontos centrais para resolver. Vamos gastar até a última gota de petróleo ou vamos fazer a transição ecológica? É preciso rever o PAC, as grandes políticas. São muitas contradições e a política ambiental anda muito lentamente. O governo precisa mostrar para onde quer ir.

O que precisa ser feito para recuperar a mata atlântica? Temos todas as condições de ser o primeiro bioma que alcançará o desmatamento zero. Mas isso é só para tirar a mata atlântica da UTI. Para tirá-la da enfermaria, temos que restaurar.

Nós sabemos fazer restauração, temos muitos projetos, mas precisamos ganhar escala. A maior dificuldade é a aplicação do Código Florestal, que deveria ser um carro-chefe da restauração como política pública. E aí isso vai em passos muito lentos.

Outro desafio será criar uma economia agroflorestal, o que demanda uma mudança nos negócios do meio rural brasileiro.

A legislação ambiental mais restritiva é um entrave para o crescimento do agronegócio? A riqueza gerada no campo pode aumentar sem nenhuma necessidade de desmatamento. Isso já é senso comum. Passei 20 anos na Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola) visitando fazendas no Brasil e há centenas de exemplos de agricultura regenerativa, que não desmata e tem alta produtividade.

[Quem desmata] É pouca gente que deve muito, faz muito dano e tem poder para afetar a governança. E que compromete a imagem do Brasil inteiro, porque lá na Europa o cara não quer saber se é só 1% que faz coisa errada aqui.

Como alertar para a gravidade da crise do clima sem que as pessoas pensem que nada mais pode ser feito? Nossa trajetória é dramática e as pessoas precisam entender a gravidade da crise. Mas a principal mensagem é: tudo isso tem solução. O último relatório do IPCC deixou isso muito claro: a humanidade tem o capital, o conhecimento e a tecnologia para resolver a crise do clima e da biodiversidade.

Qual é o papel das ações individuais? Aprendi uma coisa com o movimento antitabagismo do Brasil: eles conseguiram diminuir drasticamente o tabagismo sem nunca apontar o dedo para um fumante. A mensagem era: você não é um vilão porque está fumando, você é vítima de um sistema que te leva a fumar.

Eu acho muito legal incentivar o consumo consciente, mostrar que todo mundo é parte da solução. Mas não dá para jogar essa culpa no fulano que toma banho mais demorado. Cada pessoa faz diferença, mas temos que cobrar das autoridades e das instituições.

RAIO-X | LUÍS FERNANDO GUEDES PINTO, 53

Engenheiro agrônomo com mestrado em engenharia ambiental e doutorado em fitotecnia, todos pela Universidade de São Paulo, foi pesquisador visitante da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e é professor da Escola Superior de Sustentabilidade e Conservação. Atuou por mais de 20 anos no Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e, desde 2022, é diretor executivo da Fundação SOS Mata Atlântica.

A causa "Mata Atlântica: Regenerar e Preservar" tem o apoio da Fundação SOS Mata Atlântica.

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