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Aposta no Everton engoliu 777 e seus financiadores

Consequências da onda de compras pelo fundo se espalharam da Premier League para os segurados

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Samuel Agini Dan McCrum Ian Smith
Londres | Financial Times

Em meados de maio do ano passado, o Everton FC estava lutando pela sua sobrevivência na liga de futebol mais rica do mundo. O time nove vezes campeão inglês havia acabado de perder por três a zero para o Manchester City, com o risco real de rebaixamento. As coisas pareciam sombrias.

No entanto, do outro lado do Atlântico, um grupo de investidores de Miami atraídos por esportes e apostas de alto risco alimentadas pelo dinheiro de outras pessoas viram algo mais: oportunidade. Para os homens por trás da 777 Partners, o clube deficitário parecia um bilhete de loteria que, se desse certo, poderia resolver problemas em outras partes de sua operação.

Executivos seniores da empresa e de seu braço de investimento em futebol se reuniram naquele mês para debater uma oferta pelo Everton, um prêmio muito maior do que os outros times que a 777 havia adquirido na Itália, Brasil, Alemanha, Bélgica, França, Espanha e Austrália.

Jogadores do Everton comemoram com torcida gol contra o Arsenal no Emirates Stadium, em Londres
Jogadores do Everton comemoram com torcida gol contra o Arsenal no Emirates Stadium, em Londres - Adrian Dennis - 19.mai.2024/AFP

Josh Wander, o co-fundador da 777 que em poucos anos havia passado de festas com a estrela do basquete LeBron James para dirigir um dos maiores fundos proprietários de "multi-clubes" do futebol, apresentou-se ao Everton como uma solução para um problema inerente a esses ativos de segundo escalão: sua necessidade de dinheiro. A posição do clube de Liverpool na elite da Premier League não apenas atrairia novos investidores: também ajudaria a 777 a levantar fundos para o resto de seu império esportivo.

Nem todos na reunião estavam convencidos. Don Dransfield, um contratado de alto nível oriundo do grupo dono do Manchester City, perguntou se a compra do Everton poderia acabar prejudicando a capacidade do 777 de financiar outros clubes.

Dransfield, que se recusou a comentar, foi ignorado. O Everton evitou por pouco o rebaixamento e, em setembro passado, a 777 concordou em comprar o clube do proprietário britânico-iraniano Farhad Moshiri.

Se os fãs sentiram alívio com a perspectiva do fim do reinado de gastos livres de Moshiri, que trouxe jogadores de alto nível mas obteve pouco sucesso em campo, logo surgiram perguntas sobre os novos proprietários em potencial.

Wander considerou "absurdos" os temores dos céticos de que a 777 não fosse um comprador sério. Em conversa com o Financial Times antes do acordo, ele perguntou: "Existe alguém no mundo que tenha levado mais a sério a compra de clubes de futebol na história do que Josh Wander?"

Oito meses depois, o acordo está suspenso, forçando o Everton a vender jogadores neste verão e lançando incerteza sobre outras partes do portfólio da 777.

Apesar de emprestar mais de US$ 200 milhões (R$ 1,03 bilhão) ao Everton para ajudar a pagar contas do clube com problemas de caixa, a 777 até agora não conseguiu cumprir as condições da Premier League para concluir o acordo, como liquidar as dívidas que o Everton assumiu para construir seu novo estádio.

O brilho da associação com uma das competições esportivas mais assistidas do mundo, entretanto, convidou a um escrutínio prejudicial da outrora obscura empresa. Ações judiciais estão se acumulando dos credores da 777, buscando dívidas não pagas e fazendo alegações de fraude.

Em vez de coletar um bilhete de loteria vencedor, a 777 chamou especialistas em reestruturação e falência neste mês, para ajudá-la a trabalhar através de "desafios operacionais", "racionalizar" seus negócios e "selecionar o caminho mais lucrativo para nossos investimentos".

À medida que os problemas da 777 se acumularam, sua dependência de uma rede de seguradoras para financiar seus negócios levantou questões sobre a atuação de reguladores de Bermudas em território norte-americano, sugerindo que, sob sua supervisão, os cidadãos americanos tornaram-se financiadores involuntários de um surto de gastos insustentável.

Josh Wander já havia feito uma fortuna na loteria. Ele tinha apenas 34 anos quando ele e o ex-banqueiro Steve Pasko lideraram a compra da SuttonPark Capital em 2015 e começaram a construir o que se tornou a 777 Partners. Sua especialidade era investir em ativos financeiros esotéricos por meio de "acordos estruturados".

Oferecer dinheiro adiantado a ganhadores da loteria ou a vítimas de acidentes em troca da entrega de anuidades destinadas a pagar uma renda regular ao longo de muitos anos "criou muito dinheiro excedente", disse Wander no ano passado.

Rotas mais tradicionais para a área financeira podem ter sido limitadas pela prisão de Wander por tráfico de cocaína em 2003 —um "erro estúpido de faculdade" pelo qual ele foi colocado em liberdade condicional, disse ele ao FT. Pasko era o "cabelo grisalho... figura paterna", enquanto acumulavam cerca de 60 empresas em indústrias que vão da aviação ao seguro e mídia, de acordo com uma pessoa que conhece ambos.

As receitas anuais da 777 Partners saltaram de US$ 43 milhões (R$ 221,6 milhões), em 2016, para US$ 489 milhões (R$ 2,5 bilhões), em 2019, de acordo com documentos revisados pelo FT. No mesmo período, seus ativos se multiplicaram de US$ 310 milhões (R$ 1,6 bilhão) para mais de US$ 3,4 bilhões (R$ 17,5 bilhões).

Uma importante fonte de financiamento surgiu em 2019, quando a 777 estabeleceu uma resseguradora nas Bermudas, o ensolarado território ultramarino britânico, outrora famoso por naufrágios, que se tornou um centro para gerenciar riscos para as seguradoras do mundo.

Há muito estabelecida como um centro para ressegurar propriedades contra furacões, Bermudas também possui um setor de resseguro de vida em crescimento, porém menos conhecido. A nova 777 Re estava se juntando a uma corrida para a ilha que colocou a BMA (Autoridade Monetária de Bermudas), seu regulador financeiro, responsável por mais de meio trilhão de dólares em reservas de vida e anuidades dos EUA até o final de 2021.

A proposta da 777 Re era simples. Seguradoras "cederiam" ativos por meio de acordos de resseguro com a entidade sediada em Bermudas, que assumiria investimentos de maior rendimento que correspondessem às responsabilidades de longo prazo de seus clientes: normalmente viúvas, órfãos e aposentados.

A resseguradora apresentou rostos conhecidos ao regulador. O CEO da 777 Re era Will Rinehimer, um veterano do setor de vida de Bermudas e um conselheiro do governo, enquanto Shelby Weldon, que passou 15 anos na BMA, mais tarde se tornou diretor independente.

Documentos de 2021 mostraram uma abordagem agressiva que visava retornos sobre o patrimônio líquido superiores a 40%, alocando mais do portfólio de investimentos do grupo para "ativos proprietários", enquanto reduzia os títulos governamentais e corporativos seguros, que as seguradoras tradicionalmente favorecem.

Três grupos embarcaram; Singapore Life; Silac, uma seguradora de Utah administrada por um amigo de Donald Trump que havia liderado outra companhia de seguros que faliu; e A-Cap, proprietária de Nova York de um punhado de seguradoras e resseguradoras liderada pelo veterano do setor Kenneth King. Todos os meses, clientes em toda a América contribuíam para produtos de seguro de vida, provavelmente sem saber que parte de seu dinheiro acabaria financiando as ambições da 777.

Em King, Wander encontrou um parceiro entusiasmado. A A-Cap se tornou um importante credor da 777, ao lado dos bilhões cedidos à 777 Re. Isso tornou King um acionista significativo, mas também ampliou o risco para um grupo de seguros que acumulou US$ 11,5 bilhões (R$ 59,3 bilhões) em ativos até 2023.

Percorrendo o mundo atrás de mais negócios, Wander passou a buscar uma negociação que estava ganhando popularidade entre investidores institucionais. A aquisição de £ 2,5 bilhões (R$ 16,5 bilhões) por investidores dos EUA do Chelsea e a aquisição de € 1,2 bilhão (R$ 6,7 bilhões) do AC Milan pela RedBird Capital haviam chamado a atenção, mas outros clamavam por investir dinheiro em equipes grandes e pequenas.

Quando veio a pandemia de covid-19, forçando as partidas a serem disputadas em estádios vazios, a perda de receitas de bilheteria levou muitos clubes a buscar capital. A 777, atenta ao valor do dinheiro para os desesperados, entrou em cena.

Wander e a empresa de Pasko já haviam adquirido uma pequena participação no Sevilla, da Espanha, em 2018. Mas, em setembro de 2021, eles embarcaram em uma onda de compras com poucos precedentes no futebol internacional. Em pouco mais de um ano, a 777 concordou com centenas de milhões de dólares em investimentos no Genoa (Itália), no Vasco da Gama (Brasil), no Standard Liège (Bélgica), no Hertha Berlin (Alemanha), no Red Star (França) e no Melbourne Victory (Austrália).

A 777 encontrou outras pechinchas, incluindo participações em duas companhias aéreas de baixo custo —a Flair do Canadá e a Bonza da Austrália— e um acordo para adquirir dezenas de jatos 737-Max da Boeing. Mas era uma estratégia de investimento que outros viam como falha, argumentando que dependia da recuperação das empresas, muitas das quais não tinham fluxo de caixa para pagar a dívida que sustentava os acordos.

"Isso simplesmente não funciona", disse um especialista em finanças. "A seguradora acaba com empréstimos depreciados da 777, que não consegue honrar o pagamento de principal e juros. Eventualmente, os segurados acabam prejudicados."

À medida que a 777 Re ficava mais exposta aos investimentos ilíquidos da 777 Partners, sinais de alerta começaram a piscar. Já no final de 2022, a Silac, uma das seguradoras nas quais a 777 Re estava confiando, disse que pararia de oferecer novos negócios à empresa, segundo pessoas familiarizadas com o assunto. "Eles fecharam a torneira", disse uma dessas pessoas sobre a Silac. "Eles não estavam satisfeitos com alguns dos ativos a que estavam sendo expostos."

A A-Cap, no entanto, permaneceu atenta, mas solidária. Uma ação judicial de um credor da 777, a Leadenhall, movida no início de maio, alega que a A-Cap continuou a apoiar a 777 Partners "para manter seus credores afastados, mesmo que apenas temporariamente, e para evitar que todo o esquema fosse exposto em público".

Sinais de problemas também surgiram publicamente em novembro. A AM Best, uma agência de classificação especializada em medir a saúde de seguradoras e resseguradoras, rebaixou a 777 Re, citando "exposição significativa a investimentos" originados pela empresa de investimentos de Wander. A 777 Re encerrou 2023 com cerca de US$ 3,8 bilhões (R$ 19,6 bilhões) em ativos, quase metade dos quais estava relacionado à 777 Partners, de acordo com pessoas familiarizadas com suas finanças. Dessa quantia, cerca de US$ 270 milhões (R$ 1,4 bilhão) eram empréstimos para a Nutmeg, o veículo que a 777 Partners usou para seus negócios de futebol.

À medida que as manchetes pioravam para a 777 Re, a Singapore Life e a Silac recuperaram seus ativos cedidos. As duas empresas não responderam aos pedidos de comentário.

Como vários credores da 777, a A-Cap recorreu aos tribunais, mas sua reclamação foi direcionada não à empresa de Wander, mas à sua agência de classificação de crédito. Duas seguradoras da A-Cap disseram que sua "própria existência" estava em risco devido a um rebaixamento planejado pela AM Best, que a empresa argumentou não refletir o progresso feito na redução de sua exposição à 777. A AM Best contra-argumentou que sua credibilidade corria o risco de ser "irreparavelmente danificada" se fosse impedida de publicar sua opinião.

"É simplesmente uma bagunça", disse um executivo de seguros que preferiu não se identificar, dizendo que o episódio refletia que o regulador das Bermudas "não faz bem o trabalho de crédito".

Em um comunicado, a BMA destacou o "papel significativo" que as seguradoras cedentes têm "na seleção e alocação de ativos nas contas de garantia" em arranjos como o da 777 Re. Disse ter feito "melhorias significativas em seu arcabouço regulatório", incluindo quais ativos permite para respaldar obrigações com segurados.

Em resposta a uma série de perguntas para este artigo, a 777 disse: "Somos uma empresa privada e podemos confirmar que os fundos dos segurados nunca foram usados de forma inadequada".

Na teoria, o acordo do Everton de Wander ainda está em vigor. Moshiri prorrogou o acordo de compra e venda até 31 de maio, de acordo com uma pessoa com conhecimento do assunto. O novo estádio do Everton, que está nas etapas finais de construção, é o tipo de ativo real que poderia desbloquear financiamento, mas Moshiri agora está procurando por investidores alternativos.

Mas atender às condições da Premier League não é mais a maior preocupação da Wander. A ação judicial da Leadenhall acusando a 777 de fraude por dobrar a garantia de US$ 350 milhões (R$ 1,8 bilhão) é uma das várias de credores não pagos alegando que algumas de suas apostas no futebol foram feitas com dinheiro que não tinham. O processo da Leadenhall alegou que o Everton era apenas "o mais recente objeto brilhante do esquema fraudulento da Wander", enquanto a A-Cap era o "Mágico de Oz por trás da cortina da 777 Partners".

A 777 disse que "refuta veementemente" as alegações na reclamação da Leadenhall. A A-Cap disse que "tomará todas as medidas necessárias para proteger os interesses de seus segurados e se defenderá vigorosamente contra as alegações infundadas da Leadenhall".

Enquanto a A-Cap busca a venda de mais dos ativos que acumulou, Wander e Pasko não desistiram de seu bilhete de loteria. Mas seu controle sobre a 777 agora está em xeque.

Dias após a ação judicial da Leadenhall ser apresentada, foi revelado que a 777 Partners havia nomeado a empresa de reestruturação B Riley Advisory Services. Em uma carta ao tribunal, advogados da 777 escreveram que Wander e Pasko renunciaram como gestores do grupo em 6 de maio.

Perguntada sobre suas renúncias, uma porta-voz da 777 disse ao FT que Wander e Pasko, como proprietários de 100% da 777, permaneciam "comprometidos incondicionalmente" com seu futuro bem-sucedido. Ambos, disse ela, "continuam liderando a direção estratégica em todos os aspectos do negócio, supervisionando todas as mudanças progressivas direcionadas ao fortalecimento do valor de longo prazo da empresa".

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