Enquanto praticamente todas as atividades esportivas estão liberadas no estado de São Paulo e se discute a volta das torcidas aos estádios de futebol, no Complexo do Ibirapuera, tradicional berço do esporte olímpico brasileiro, a situação é diferente.
Impedido pela Justiça de abrir o edital para a concessão do local à iniciativa privada, o governo Doria trabalha para esvaziá-lo. A academia de musculação, por exemplo, não está autorizada a atender pessoas e os treinamentos esportivos não conseguiram o aval para retornar ao local ou foram realocados para outras praças.
Vale lembrar que as academias estão liberadas para funcionar, com restrições, desde abril. Funcionários do ginásio disseram à Folha, em condição de anonimato, que as inscrições para os treinos funcionais (que atendem sobretudo a população do bairro) até chegaram a ser abertas.
Eles contam que, no fim de agosto, após iniciar os cadastros para quem quisesse utilizar o espaço, seus superiores avisaram por Whatsapp que as inscrições deveriam ser suspensas até nova ordem da direção do complexo.
Questionada, a Secretaria de Esportes do estado afirmou que os protocolos para retorno das atividades no local foram aprovados no último dia 14.
"Desde então, a pasta está organizando todos os procedimentos de distanciamento, sinalização, álcool gel e demais ações para promover um retorno seguro das atividades na academia e quadras cobertas do Ibirapuera", disse o órgão, em nota.
A reportagem visitou o local, que já abrigou o Centro de Excelência Esportiva (antigo Projeto Futuro) e foi casa de medalhistas olímpicos como Maurren Maggi (ouro no salto em distância) e os judocas Tiago Camilo (prata e bronze), Felipe Kitadai (bronze), Rafael Silva (dois bronzes) e Henrique Guimarães (bronze).
Durante a visita, a Folha testemunhou a academia vazia e não viu treinos de alto rendimento. Também observou que os problemas de infraestrutura, que há anos são uma demanda dos atletas que utilizam o espaço, se agravaram.
Atualmente funciona no local um posto do laboratório privado Fleury para testes de Covid. O estádio de atletismo, que abrigou um hospital de campanha durante vários meses na pandemia, está em pior estado do que antes da chegada do coronavírus ao Brasil —com a pista em péssimas condições e o gramado também ruim.
A parede da piscina de saltos cedeu dentro do tanque. Relatos dão conta também de que o sistema de aquecimento de água quebrou.
Os funcionários reclamam ainda que a paralisação das atividades em razão da pandemia era o momento perfeito para que fosse feita a manutenção das instalações, que há anos se deterioram pela falta de cuidado. Não aconteceu.
O governo de João Doria (PSDB) realocou as equipes de treinamento do atletismo e do judô para o recém inaugurado Centro Excelência Esportiva em São Bernardo do Campo. Segundo os relatos, o local tem alojamento e estrutura de ponta e é excelente para a prática esportiva.
Já o vôlei não foi realocado para nenhum lugar. O projeto já recebeu autorização da Prefeitura de São Paulo para realizar treinos, mas há meses aguarda aval do governo do estado para retornar ao Ibirapuera. Enquanto não pode utilizar o lugar, gasta R$ 2.000 por mês para alugar horários em uma quadra particular e não consegue manter nem metade das 100 atletas que tinha antes da pandemia.
Questionada, a secretaria afirmou que "está investindo também R$ 30 milhões na modernização do Complexo Baby Barioni [na Barra Funda], que vai contar com academia completa e aulas em diversas modalidades".
Há na pasta a expectativa de que o complexo seja concedido à iniciativa privada em breve e que uma empresa invista R$ 1 bilhão no local, por isso não faria sentido o investimento em obras e infraestrutura.
A concessão do Complexo do Ibirapuera é um desejo antigo das gestões tucanas em São Paulo, mas enfrenta forte resistência de atletas, ex-atletas, moradores e entidades culturais e vem sofrendo derrotas em diversos âmbitos.
Uma das batalhas é travada na área da preservação do patrimônio. Projetado pelo arquiteto brasileiro Ícaro de Castro Mello, há diversos pedidos para que o complexo seja tombado.
No início do ano, a Folha revelou que o local tornou-se novo palco das disputas entre Doria e Jair Bolsonaro (sem partido).
Crítico do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o presidente quer que o órgão aprove o tombamento do complexo em nível federal.
Em tese, isso não proibiria a concessão, mas torna quase inviável os planos de, por exemplo, construir uma nova arena multiuso para 20 mil pessoas ou até a transformação do ginásio principal em um shopping.
Paralelamente, para tentar evitar que o espaço seja tombado, Doria chegou a mudar a composição do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico de SP, entidade que cuida do assunto em nível estadual).
Após a intervenção do governador, o conselho decidiu não incluir o complexo em sua lista de patrimônios a serem preservados, o que na época foi uma vitória do tucano.
No Iphan, o tombamento já teve pareceres favoráveis. Caso seja concretizado, anulará a jogada de Doria.
O governador também foi derrotado na Justiça de São Paulo, que emitiu uma liminar para barrar o edital de concessão do complexo. O governo trabalha junto com a Prefeitura para reverter a decisão.
Em nota após a publicação da reportagem, a gestão Doria diz que as atividades serão retomadas em breve, no entanto, sem especificar quais delas voltarão ao local e quando exatamente isso acontecerá. O comunicado também defende que a concessão ampliará o uso do espaço e o modernizará.
Leia a íntegra da nota da Secretaria de Esportes do Estado de São Paulo
A Secretaria de Esportes do Estado de São Paulo esclarece que a reportagem faz uma acusação descabida e sem respaldo na realidade sobre o funcionamento e manutenção do Complexo do Ibirapuera. Por conta da pandemia da COVID-19, as atividades do Complexo do Ibirapuera e de todos os equipamentos administrados pela Pasta foram suspensas. Com a autorização de retorno, as aulas serão retomadas em breve, respeitando integralmente o protocolo aprovado. Sobre a manutenção do espaço, o processo de concessão –e não de privatização, conforme utilizado incorretamente no texto– visa justamente não apenas manter as atividades que são restritas a poucas pessoas da região - como ocorre há pelo menos uma década -, mas ampliar o uso e modernizar todo o complexo, que vai continuar com a função esportiva preservada, será de livre circulação, e terá toda a estrutura necessária para receber grandes eventos esportivos –que estão impossibilitados pela estrutura atual–, culturais e de todos os segmentos, sem para isso utilizar recursos públicos em toda a reformulação.
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