Racismo e homofobia possuem a mesma natureza, diz pesquisador
Apu Gomes/Folhapress | ||
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Para Wagner Xavier de Camargo, 40, pesquisador na �rea de sexualidades dissonantes no esporte na Universidade Federal de S�o Carlos, a diferencia��o feita por alguns entre ofensas racistas e homof�bicas em est�dios n�o passa de senso comum.
Por tr�s do argumento de que os gritos de "bicha" s�o brincadeiras, diferentes dos gritos de "macaco" dirigidos a atletas negros, h� o temor da amea�a que as identidades LGBT (l�sbicas, gays, bissexuais e transg�neros/as) p�em � "masculinidade hegem�nica" no futebol, segundo ele.
"Colocar a homofobia como c�mica � jogar a homossexualidade no registro da fic��o. Negando que h� atletas gays, tenta-se ignorar as possibilidades alternativas de exist�ncia que eles colocam ao universo segregador de g�nero que � o esporte", diz o pesquisador, que � p�s-doutorando da Funda��o de Amparo � Pesquisa do Estado de S�o Paulo.
Em entrevista, ele discute a homofobia no esporte, a import�ncia do manifesto contra o grito de "bicha" divulgado pelo Corinthians, as possibilidades de subverter a estrutura ("masculinista") do esporte e a atua��o das torcidas gays nas redes sociais hoje.
Folha - Como voc� avalia a homofobia no esporte hoje?
Wagner Xavier de Camargo - A sua quest�o � bem ampla. Vou decomp�-la em algumas partes, para come�ar. A homofobia � uma nova express�o de um problema antigo. Enquanto institui��o, o esporte � segregador: divide corpos a partir de m�ltiplos crit�rios, como idade, g�nero, entre outros, e deposita principalmente sobre o g�nero masculino todas as suas expectativas. Essa express�o monoliticamente masculina do esporte massacrou desde sempre outras possibilidades n�o-institucionalizadas ou n�o-legitimadas socialmente, que s�o v�rias. As mulheres, por exemplo, foram segregadas desde sempre no esporte, e continuam sendo at� hoje.
J� a homofobia enquanto avers�o � rela��o entre iguais � algo relativamente novo. Isso porque a homossexualidade ganhou espa�o nos �ltimos tempos, e se no passado "ficar no arm�rio" era regra, estamos hoje numa fase de transi��o para a "visibilidade", em que atletas gays t�m sido reconhecidos publicamente por parcelas da sociedade.
Quando emerge, a homofobia tenta fazer frente a isso. Ela � uma esp�cie de ant�doto para algo dissonante em rela��o ao que � aceito e legitimado. � uma forma de manuten��o das estruturas, sempre.
Por que o preconceito no esporte continua com for�a?
O esporte � uma institui��o que segrega g�neros. Para funcionar, ele separa provas binariamente. J� no s�culo 19, o esporte moderno � majoritariamente masculino. Mulheres n�o podiam praticar competi��es oficiais. E essas separa��es est�o calcadas em preconceitos que vigoram at� hoje. Dividir homens e mulheres segundo suas capacidades fisiol�gicas, argumentando que homens aguentam mais peso do que mulheres em provas como arremesso de disco, por exemplo, � algo que parte mais do senso comum preconceituoso do que de pesquisas cient�ficas.
Por outro lado, os pr�prios atletas gostam de competir com pessoas de seu g�nero. O corpo que coloca em quest�o o g�nero (o transexual homem ou mulher, por exemplo), que p�e d�vidas � norma, apresenta uma amea�a � estabilidade, ao j� conhecido. Dessa forma, os sujeitos reproduzem os preconceitos e perpetuam essa estrutura de segrega��o.
Os preconceitos est�o incrustados em corpos, institui��es e procedimentos, e assim eles se perpetuam em todas as esferas, inclusive no esporte.
Na semana passada, o Corinthians publicou um manifesto contra o grito de "bicha" nos tiros de meta advers�rios. Depois disso, o presidente do STJD, Caio Rocha, disse que n�o v� discrimina��o quando um jogador heterossexual � chamado de "bicha". Houve quem defendesse que esse tipo de xingamento � uma brincadeira e, portanto, menos grave que gritos racistas. O que voc� acha?
Xingamentos racistas e homof�bicos s�o de mesma natureza, seguem a mesma l�gica, e as pessoas t�m que responder da mesma forma por eles. As pessoas falam que � brincadeira porque a sexualidade n�o pode ser colocada em um patamar s�rio sem trazer graves consequ�ncias.
A vis�o do presidente do STJD, que deveria ser munido de olhares ponderativos sobre o assunto e n�o dizer besteiras, � "boleira", de senso comum. Colocar a homofobia como c�mica � jogar a homossexualidade no registro da fic��o, para n�o precisar lidar com sua exist�ncia. Negando que h� atletas gays, tenta-se ignorar as possibilidades alternativas de exist�ncia que eles colocam ao universo segregador de g�nero que � o esporte, onde o masculino est� no topo da hierarquia
Esse manifesto aponta um cen�rio mais otimista para as identidades LGBT no futebol brasileiro?
N�o necessariamente. Mas esse manifesto � bastante in�dito: � claro, intelig�vel e vai direto ao ponto. E pode ser um primeiro movimento de um "efeito domin�", que pode tocar todos os clubes do futebol brasileiro.
A problem�tica da homofobia no esporte chegou para ficar e deve se agudizar logo. No ano passado, quando o Emerson beijou o amigo dele e gerou toda a pol�mica, muitos achavam que logo a quest�o dissiparia. Hoje, parece que a discuss�o vai estilha�ar para todos os cantos: come�a na discuss�o do xingamento de "bicha", e ent�o pode alcan�ar a discuss�o s�ria sobre a sexualidade dos jogadores, sobre os ambientes homoer�ticos no esporte.
O que seria a "masculinidade hegem�nica" no esporte, conceito que voc� utiliza em seus trabalhos?
Trata-se de um conceito j� utilizado por outros autores. O soci�logo americano Eric Anderson faz uma distin��o entre "capital masculino" e "masculinidade hegem�nica". O "capital masculino" n�o � necessariamente hegem�nico. Por exemplo, um atleta negro, musculoso, "testosteronado", tem bastante capital masculino, mas n�o participa da hegemonia, porque n�o � branco. Ele est� fora dos padr�es de beleza estabelecidos socialmente.
A masculinidade hegem�nica � o valor dominante de maneira mais ampla, na sociedade, e tamb�m no esporte. Ter masculinidade hegem�nica � ser branco, musculoso, parecer heterossexual, ser crist�o e bem educado. O gordinho e o negro est�o fora desses padr�es hegem�nicos de beleza masculina, por exemplo.
Essa masculinidade hegem�nica hierarquiza sujeitos: quem n�o faz parte da hegemonia � tratado como abjeto. Nessa classifica��o, as identidades femininas e LGBT s�o negativadas.
De modo mais amplo, a homofobia tem diminu�do, aumentado ou permanece igual?
A homofobia tem aumentado. Isso porque os sujeitos dissonantes, ou seja, que n�o se encaixam nos padr�es da heteronormatividade, como os gays, e que mostram que existe algo para al�m da norma, t�m conseguido mais visibilidade recentemente. H� mais gays e l�sbicas andando de m�os dadas nas ruas; as travestis t�m nome social, o que significa que partes da sociedade t�m respeitado suas identidades. E toda a��o gera uma rea��o. A homofobia aumenta porque a presen�a social dos homossexuais tem aumentado.
E a homofobia � mais intensa no universo esportivo?
N�o. � equivalente em outras esferas, como a religiosa e a militar. A intensidade � a mesma, mas a visibilidade � maior. Em institui��es como o ex�rcito israelense, n�o se fica sabendo de express�es sexuais dissidentes, por exemplo. Salvo exce��es, nas igrejas isso tamb�m � oculto. A homofobia no esporte pode parecer recrudescida porque � um espa�o de tr�nsito comum - todos n�s temos rela��es com o esporte. A l�gica de discrimina��o � a mesma em todas as esferas, mas a visibilidade � maior no esporte.
E como subverter essas l�gicas da discrimina��o no esporte?
N�o tem receita de bolo nem acordo entre os pesquisadores do tema. Para mim, n�o se trata de ocupar os espa�os, mas de tentar se colocar de maneira diferenciada neles. Minha cr�tica aos atletas gays que entrevistei em minhas pesquisas � a de que n�o adianta eles mostrarem ao mundo heterossexual que conseguem organizar competi��es e disputar em alto n�vel. Para o mundo heterossexual, isso n�o importa nada, eles desconsideram a exist�ncia desses atletas e competi��es. O que tem que ser feito � subverter a pr�pria pr�tica esportiva, mudar as categorias bin�rias de g�nero das atividades esportivas. Diminuir a dist�ncia de 100 m para 70 m no atletismo? Correr vestido de "drag queen"? Medir os n�veis de estrog�nio e dividir os atletas em categorias a partir disso? N�o sei, � algo a se pensar, mas s�o possibilidades. A ideia de criar esportes alternativos � igualmente interessante.
O que falta � que esses atletas exer�am sua ag�ncia, subvertendo as atividades esportivas. H� o exemplo de um grupo de tailandesas voleibolistas que viajam o mundo em competi��o. S�o homens fisiologicamente e optaram por uma identidade de g�nero feminina, ou seja, s�o mulheres. E extremamente femininas: cabelos longos, unhas longas, maquiadas, t�m muito estrog�nio. E apropriando-se da t�cnica do v�lei, competem contra homens e mulheres e ganham de qualquer um. E n�o se trata somente da vit�ria, mas tamb�m da performance: elas jogam dando um show. E assim subvertem a estrutura absolutamente masculinista do v�lei.
Atualmente, entre outras coisas, voc� est� estudando torcidas gays de futebol. Poderia explicar um pouco da sua pesquisa?
Desde o ano passado, tenho estudado a prolifera��o de p�ginas de torcidas alternativas na internet, como a Galo Queer, Cruzeiro Maria, Bambi Tricolor, entre outras. S�o torcidas mais virtuais do que reais. Muitos dos que as apoiam curtem as p�ginas virtuais dessas torcidas no Facebook, mas n�o v�o aos est�dios com as camisas de seus clubes e com uma bandeira do arco-�ris. � uma nova forma de torcer sem a ocupa��o do espa�o f�sico.
As torcidas gays do passado seguiam uma outra l�gica. Nos anos 1970, havia a Coligay, torcida organizada do Gr�mio composta por homossexuais, que ia aos est�dios, sofreu preconceito no come�o e depois acabou at� virando uma esp�cie de xod� na �poca, um "p� de coelho" do time. Naquela �poca, ir ao est�dio e ocupar os espa�os era importante para a visibilidade da causa. Nesse sentido, essas torcidas seguiam a mesma l�gica dos movimentos estudantis da �poca, que sa�am em massa �s ruas para lutar por suas causas.
As torcidas gays de hoje ocupam os espa�os poss�veis. Com a viol�ncia e a homofobia generalizadas atualmente, ir ao est�dio, al�m de uma experi�ncia hostil, implica em riscos grandes para um torcedor organizado homossexual. Na internet, eles encontraram um novo meio de express�o e ocupam os espa�os virtuais. E n�o s�o menos torcedores por isso, nem mais: eles torcem de maneira diferente.
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