Descrição de chapéu primeira infância

Especialistas defendem primeira infância como prioridade nas eleições 2024

Investimentos nessa etapa da vida reduzem desigualdade e têm alta taxa de retorno econômico, mostram estudos

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Fernanda Ravagnani
São Paulo

O investimento dos municípios em serviços que melhorem a qualidade de vida das crianças de zero a seis anos tem o potencial de reduzir a desigualdade, diminuir a violência e aumentar o desenvolvimento da região ao longo de décadas. Por isso, esse tema deveria ser prioritário na pauta das eleições de 2024, afirmam especialistas e entidades que estudam o assunto.

"A ciência já sabe que esse período é uma janela de oportunidade, a fase mais importante da vida", diz Maíra Souza, oficial de desenvolvimento infantil na primeira infância do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). "No Brasil, estamos falando de muita gente, são 18 milhões de crianças nessa faixa etária."

Existe um consenso internacional de que o investimento na primeira infância é o que apresenta a mais alta taxa de retorno econômico, com base no trabalho do norte-americano James Heckman, Prêmio Nobel de Economia de 2000. Em um de seus estudos, o economista encontrou um retorno anual de 13 por cento sobre investimento em um programa de cuidado integral a crianças de zero a cinco anos de famílias desfavorecidas nos Estados Unidos. As crianças foram acompanhadas por mais de três décadas, e os ganhos foram calculados considerando benefícios em saúde, produtividade e redução do envolvimento em criminalidade e uso de drogas.

A imagem mostra duas crianças de costas, sem camisa, caminhando por uma rua estreita em uma área urbana. Uma das crianças está segurando uma pipa azul. Ao fundo, há uma parede azul com uma janela de grades e uma porta de metal. Há também um número '68B' pintado na parede branca ao lado da porta.
Crianças brincam com pipa na Ocupação Morumbizinho, no bairro Jardim Rodolfo Pirani, na zona leste de São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress

"Por causa da maleabilidade do cérebro, bons estímulos nos primeiros anos de vida podem gerar transformações que têm o poder de desconectar a herança de pobreza. É uma virada de chave", afirma o pesquisador Marcelo Neri, diretor do FGV Social. Ele lembra que o Brasil tem um nível baixo de mobilidade social, ocupando o 60º lugar entre 82 países, de acordo com o levantamento do Fórum Econômico Mundial de 2020. "Ou seja: pai pobre, filho pobre. Temos que cortar essa transmissão de pobreza entre gerações."

A professora de saúde pública Márcia Machado, da Universidade Federal do Ceará (UFC), ressalta que, assim como os estímulos positivos no início da vida têm grande repercussão no futuro, os negativos também têm. "O cérebro é como uma esponja. O estresse e a exposição à violência vão manifestar seus efeitos depois de anos, perpetuando o ciclo", diz ela.

É o que mostram os estudos da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) publicados em 2022 na revista Lancet. O grupo de pesquisadores analisou dados da população de baixa renda de 95 países e concluiu que crianças de famílias mais pobres morrem mais e têm o desenvolvimento prejudicado, incluindo no quociente de inteligência (QI), com efeitos que persistem na vida adulta.

Investir na primeira infância tem a vantagem de que os resultados são colhidos pela pessoa e pela sociedade ao longo dos anos. É o oposto do que ocorre com ações com foco mais assistencialista, como benefícios previdenciários ou alfabetização de adultos. "No Brasil se combate a pobreza quando ela já existe. A melhor maneira de preveni-la é atuar na primeira infância", afirma Neri.

As crianças são a população mais vulnerável em situações extremas de violência, desastres naturais e pandemias, e são proporcionalmente mais pobres, o que por si só já justificaria a prioridade na pauta eleitoral. "No Brasil, 15% das crianças de 0 a 4 anos vivem abaixo da linha da pobreza extrema. É a proporção mais alta em todos os grupos, de acordo com um levantamento que fizemos com base nos dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua de 2023", diz o pesquisador do FGV Social.

No Brasil, 15% das crianças de 0 a 4 anos vivem abaixo da linha da pobreza extrema

Marcelo Neri

pesquisador e diretor do FGV Social.

Em anos eleitorais, afirma o pesquisador, os níveis de pobreza no Brasil costumam até se reduzir, devido às ações assistenciais com fins políticos. Como criança não vota, esses "benefícios" acabam não atingindo esse grupo populacional.

A gestão municipal influencia diretamente na vida das crianças, porque, além de ser a instância administrativa mais próxima das famílias, cuidar das ruas, das praças e áreas de lazer, é o município que detém as estruturas físicas dos serviços. As creches e as escolas de educação infantil estão a cargo das prefeituras, assim como as UBS (unidades básicas de saúde).

Mesmo que as diretrizes do Programa Nacional de Imunizações (PNI) sejam federais, quem se encarrega da aplicação das vacinas é o município. Também é a administração municipal a responsável de assistência social como o Cras (Centro de Referência da Assistência Social), que atende pessoas em situação de vulnerabilidade e cuida das inscrições no CadÚnico e no Bolsa Família, e o Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), que trata de casos ainda mais delicados, como vítimas de violência.

"O problema é que muitos candidatos nem têm conhecimento sobre o que a ciência vem mostrando a respeito da relevância das experiências na infância", diz o professor Vital Didonet, assessor da Rede Nacional Primeira Infância.

"Os candidatos estão sob pressão de inúmeras demandas. Mas precisam lembrar que é a própria Constituição que determina que as crianças têm de ter prioridade. O artigo 227 diz que é dever da família, da sociedade e do Estado cuidar de crianças e adolescentes com ‘absoluta prioridade’", cita.

Uma das dificuldades apontadas pelos especialistas é que os resultados dos investimentos em primeira infância não são tão visíveis, pois os serviços de qualidade vão reverberar depois de décadas na saúde individual e no combate à desigualdade econômica. "O mercado eleitoral não remunera ações de longo prazo", diz Marcelo Neri.

Alguns tipos de investimento, no entanto, podem dar resultados rápidos e visíveis. "Um esforço para aumentar a qualidade e o número de consultas do pré-natal faz com que cresça o número de bebês que nascem vivos, reduz a prematuridade e a mortalidade materna", ressalta Maíra Souza, do Unicef, que defende que os municípios tenham ferramentas para acompanhar e divulgar esse tipo de indicador.

Iniciativas para a primeira infância

Para que a gestão municipal se comprometa em longo prazo com o tema da infância, especialistas e entidades recomendam a elaboração do Plano Municipal de Primeira Infância (PMPI). "Falar em primeira infância é fácil, mas daí a colocar no papel, priorizar no orçamento, mobilizar comitês intersetoriais, garantir que o investimento em creche não seja só na inauguração, vai uma distância muito grande", diz Maíra Souza.

O objetivo do documento é organizar prioridades do município na área ao longo de um período mais longo, por exemplo de dez anos. O Unicef, junto com a RNPI (Rede Nacional Primeira Infância) e a Andi (organização da sociedade civil que articula ações em mídia para o desenvolvimento) disponibiliza uma cartilha sobre o PMPI e ferramentas para a criação, aprovação legislativa, implementação e acompanhamento do plano, com participação da sociedade. A intenção é dar continuidade às ações, evitando que as prioridades sejam abandonadas sempre que a administração muda de mãos.

O incentivo ao PMPI é reforçado pelos selos Município Aprovado pelo Unicef e Prefeito Amigo da Criança (Fundação Abrinq). A Rede Nacional de Primeira Infância promove em anos eleitorais a campanha Criança É Prioridade convidando candidatos a assinar uma carta compromisso, com o apoio também dos tribunais de contas dos municípios.

A Semana do Bebê é outra iniciativa que entidades como o Unicef estimulam os municípios a adotar, com ações para crianças e adultos, como atividades infantis, mutirão de vacinação, oficinas técnicas para profissionais, gerando conscientização e aumentando a exigência da sociedade por serviços de qualidade.

Reunidas sob o guarda-chuva da Agenda 227, mais de 450 instituições da sociedade civil ligadas à primeira infância lançaram em maio o documento "Prioridade Absoluta nas Eleições 2024", com diretrizes aos candidatos sobre investimentos na área.

Marcelo Neri, do FGV Social, destaca também como caminho no longo prazo o estabelecimento de metas internacionais, como as Metas do Milênio e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que criam um "campo neutro" para a priorização dos investimentos, para além de governos e partidos.

"A primeira infância é inesgotável como projeto político. Quanto mais se der oportunidade para a criança crescer e se desenvolver, mais longe ela irá. O melhor investimento que um governo pode fazer não é em Bolsa de Valores, na Petrobras, exploração de minério, estímulo à agricultura. Tudo isso é necessário, mas o que tem retorno econômico mais vigoroso é o investimento na primeira infância", conclui o educador Vital Didonet.

"Existe essa ideia de que a criança é o cidadão do amanhã. Mas não, ela já é cidadã agora", diz Maíra Souza, do Unicef. A proposta de Marcelo Neri, do FGV Social, para que as crianças entrem de verdade no radar dos políticos chega a ser inusitada e, segundo ele, utópica: que cada criança tivesse direito a um voto, dado pelos pais. "Seria um modelo para reduzir a sub-representação e a invisibilidade dessa população no mercado eleitoral."

A série Primeira Infância é uma parceria da Folha com a ONG Todos Pela Educação e a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal

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