Os alimentos in natura, ou seja, consumidos da forma como foram colhidos perderam espaço na mesa brasileira para os ultraprocessados, famosos na forma de sucos em pó e pão industrializado. Segundo pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), cerca de 20% do total de energia consumida em 2017-2018 pelos brasileiros com 10 anos ou mais veio dos chamados superindustrializados.
O artigo diz, ainda, que de 2008 a 2018 houve um aumento médio de 5,5% no consumo de alimentos ultraprocessados no país. Embora a pesquisa aponte que mulheres, adolescentes e pessoas brancas de escolaridade maior nas regiões Sul e Sudeste sejam os maiores consumidores de ultraprocessados, o crescimento foi mais expressivo em pessoas negras e indígenas, moradores da área rural e das regiões Norte e Nordeste e nos grupos populacionais mais pobres e com menores níveis de escolaridade.
Os autores, que usaram dados das Pesquisas de Orçamentos Familiares (POF) 2008–2009 e 2017–2018 afirmam que crianças e adolescentes, justo os que mais precisam de nutrientes e experiências identitárias com a comida, são os mais atingidos.
Mais doces que os açúcares naturais, mais gordurosos, mais fáceis de mastigar e de comprar, tanto pelo preço quanto por não exigirem preparo elaborado, os ultraprocessados representam riscos. O Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, afirma que esses alimentos favorecem o surgimento de doenças e que prejudicam a cultura alimentar, que representa os modos de fazer e comer que formam as identidades de um povo.
Estudo publicado na revista Diabetes Care por pesquisadores dos EUA, Holanda, Canadá e Brasil, porém, colocou em debate se, diante da escassez de alimentos todos os ultraprocessados podem ser considerados prejudiciais.
Com base em coortes variadas dos Estados Unidos, a pesquisa avaliou dados de 198.636 participantes e apontou que o risco de diabetes tipo 2 foi menor com alguns ultraprocessados, como cereais; pães escuros e integrais ou à base de frutas; e iogurte e sobremesas à base de leite.
Pães refinados, molhos, condimentos, bebidas adoçadas artificialmente, produtos de origem animal ou pratos prontos para consumo, entretanto, seguem associados a maior risco de diabetes.
O endocrinologista Fernando Gerchman, diretor do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) diz que a nomenclatura "ultraprocessado do bem" mais confunde que esclarece.
Ele avalia que nem todos os ultraprocessados são prejudiciais e cita exemplos como os fortificados com micronutrientes, os sem associação a gordura trans ou excesso de sal e açúcar e ainda os produzidos para dietas específicas, como a sem glúten, consumidos por quem tem doença celíaca.
Patricia Jaime, coordenadora científica do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens), entretanto, diz que na ciência é preciso levar em conta que um estudo isolado não cria uma tendência ou um fato. "Existem dezenas de estudos que mostram que ultraprocessados estão, sim, associados a um maior risco de desenvolvimento de diabetes."
Ela afirma que o estudo em questão analisa apenas uma doença, ignorando dados sobre o desenvolvimento de outras patologias.
Os ultraprocessados, de acordo com a Nupens, não são propriamente "comida", mas formulações de substâncias derivadas de alimentos, frequentemente modificadas quimicamente e de uso exclusivamente industrial. "Não existem ultraprocessados do bem. Trata-se de uma ideia extremamente simplista, geralmente propagandeada por representantes da indústria que, claro, lucra com essa venda", diz Jaime.
A pesquisadora reforça que esses produtos trazem pouco ou nenhum alimento inteiro, além de conter corantes, aromatizantes, emulsificantes e outros aditivos para intensificar o sabor, mas que afetam o sistema de fome e saciedade —o consumo de ultraprocessados também está altamente associado ao aumento da obesidade e do sobrepeso global.
"São formulados para consumo exagerado, com quantidades excessivas de açúcar, sal e gordura, levando ao que chamamos de hiperpalatabilidade —um sabor extremamente estimulante, não encontrado em alimentos in natura. A máxima ‘é impossível comer um só"’ vai além de um mero slogan: é literal", diz.
Quanto à textura, os ultraprocessados tendem a ser macios, dissolvendo na boca e desestimulando a mastigação, o que faz o cérebro demorar mais para identificar que a fome passou.
Um levantamento publicado pelo Nupens/USP em novembro de 2022 mostrou que, apenas no Brasil, cerca de 57 mil mortes prematuras (de pessoas com idade de 30 anos a 69 anos) são atribuíveis ao consumo de ultraprocessados. Jaime diz que há associações entre o consumo de ultraprocessados um maior risco de desenvolvimento de diabetes, hipertensão, câncer e depressão.
Para a produção e consumo de ultraprocessados, porém, parece uma realidade distante. Segundo Gerchman, o endocrinologista, há países em que 50% da ingestão diária depende desse tipo de alimento, caso da Inglaterra. "Não haveria na nossa matriz alimentar capacidade qualquer de substituir da noite para o dia esses alimentos", afirma.
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