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Lenira Carvalho organizou a luta das trabalhadoras domésticas por direitos

Alagoana se tornou protagonista na busca dessa classe profissional por reconhecimento

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Maciel Henrique Silva

Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco

Recife

Não se escreve a história da escravidão no Brasil sem ligá-la à história do trabalho doméstico. E não se escreve essa história sem passar pela trajetória de Lenira Carvalho.

A trabalhadora doméstica, militante pelos direitos da categoria, nasceu em 1932 no município de Porto Calvo, em Alagoas. Era filha de uma mulher negra que trabalhou a vida inteira como doméstica na casa-grande de um engenho.

A tristeza da mãe atravessou a infância da filha, que também precisou trabalhar como doméstica, mas depois se tornou protagonista da luta das trabalhadoras domésticas do Brasil por direitos e reconhecimento.

Ilustração de Veridiana Scarpelli publicada na Folha de S.Paulo em 27 de outubro de 2023, mostra uma mulher negra no primeiro plano.  Ela aparece da cintura para cima, usa uma camisa xadrez em tons avermelhados, com braço esquerdo levantado e com a mão direita arregaçando do lado esquerdo. Ela usa um óculos amarelo. Ao fundo, uma silhueta de multidão, com bandeiras e cartazes, escritos "Carteira-assinada!", "13º salário" e "1 mês de férias"
Ao tomar consciência de classe enquanto trabalhadora doméstica, a alagoana Lenira Carvalho tornou-se uma das principais militantes pelos direitos do grupo - Veridiana Scarpelli/Folhapress

Tudo começou quando uma cozinheira que trabalhava na mesma casa que Lenira a convidou para estudar no período noturno em um colégio de freiras salesianas. Como ela disse: "Enchi-me de coragem".

Conseguiu também uma folga quinzenal para participar de atividades recreativas organizadas pelas freiras, alargando o universo social das duas.

Durante seus estudos, o acontecimento que fez de Lenira uma militante foi seu ingresso no coletivo religioso e político Juventude Operária Católica. Após o golpe militar de 1964, foi considerada comunista e presa porque havia participado de reuniões, celebrado o 1º de Maio de 1963 e organizado o Congresso Regional das Empregadas Domésticas no Recife e a primeira passeata das domésticas do Brasil.

Ao sair da prisão, Lenira voltou para o trabalho doméstico, mas "muita coisa eu não aceitava mais", afirmou sobre as tensões com os patrões para registrar sua carteira de trabalho, um dos requisitos para a fundação da Associação de Trabalhadoras Domésticas do Recife, em 27 de julho de 1979, nos moldes das associações já existentes de São Paulo e do Rio de Janeiro.

A nacionalização das lutas das trabalhadoras domésticas por meio dessas associações foi um passo fundamental para a criação do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas, pois esses grupos que se formaram retiraram as domésticas do isolamento social em que viviam.

Para Lenira, os direitos de celebrar aniversários, de passear e de morar em seu próprio lugar, entre outros, inserem as trabalhadoras domésticas em outras lutas populares, como o direito à moradia, e desconstrói a relação de exploração naturalizada na expressão "como se fosse da família".

a foto mostra uma senhora idosa negra, já de cabelos grisalhos, falando no que parece ser o ambiente de uma sala de estar. ela usa óculos de grau e uma camisa florida
Lenira Carvalho em cena do documentário "Digo às Companheiras que Aqui Estão", dirigido por Sophia Branco e Luís Henrique Leal - Divulgação

A tomada de consciência de classe das trabalhadoras domésticas foi fundamental para que essas mulheres lutassem por direitos e pelo reconhecimento como trabalhadoras, pois a categoria doméstica não fazia parte da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT, 1943).

Mesmo nos anos 1980, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) não enxergava as trabalhadoras domésticas como pertencentes à classe trabalhadora, razão pela qual Lenira afirmou durante os debates da Constituinte: "Não acreditamos que façam uma Constituição sem que seja reconhecido o direito de 3 milhões de trabalhadoras desse país".

Até então, os únicos direitos eram carteira de trabalho e férias de 20 dias por ano, reconhecidos em 1972.

Ao longo dos anos 1990, diante da indiferença e da discriminação das centrais sindicais compostas majoritariamente por homens, Lenira criou estratégias e estabeleceu parcerias entre as trabalhadoras domésticas e coletivos feministas, como o SOS Corpo, onde ela foi trabalhar na limpeza com o objetivo de entender o movimento feminista.

Sobre esse período, ela afirmou: "Eu mudei, e o movimento feminista também". Corpo, saúde e sexualidade passaram a fazer parte das preocupações das trabalhadoras domésticas.

Lenira escreveu sua própria história em um livro publicado em 2000, "A Luta que me Fez Crescer", com pouco mais de 140 páginas.

A partir da entrevista concedida à pesquisadora Cornelia Parisius, ela se tornou escritora, denunciando as violências sexuais sofridas pela mãe e contando sobre o desejo de não repetir a história dela, uma mãe solteira, abandonada e obrigada a viver em casas de quem só a explorava e a tratava sem nenhum direito e afeto. Por isso o apego de Lenira à religião e à luta sindical contra a exploração dos pobres pelos patrões por meio da conquista de direitos.

A autobiografia de Lenira a coloca ao lado de Carolina Maria de Jesus e seu fundamental "Quarto de Despejo". São testemunhos e narrativas com sensibilidade incomum e sabor de conversa ao pé do ouvido, mas que durante muito tempo foram apagados e desqualificados.

Felizmente hoje são obras reconhecidas pela literatura e amplamente divulgadas para a população brasileira.

Lenira faleceu no dia 3 de agosto de 2021, aos 88 anos. O legado de sua luta é tão vasto que ainda vamos demorar para compreendê-lo em sua totalidade: uma consciência de classe profunda; o debate sobre afetividade e luta por direitos; sua capacidade de não dissociar fé de política (fazendo da fé forte instrumento de emancipação); a astúcia de integrar as demandas da categoria com as lutas coletivas urbanas; sua humanidade e o humanismo, que podem ser considerados radicais em tempos de guerras.

Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil

O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes e, em geral, pouco conhecidas ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje.

Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e têm publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.

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