'Irm�' do crack, droga se dissemina na periferia de cidades da Argentina
Um sorriso largo se abre com facilidade e ilumina a face levemente morena e arredondada de Lorena. A cada poucas palavras ditas em um espanhol r�pido, pausa para um riso leve, como se aquela fosse a deixa para eu rascunhar em meu caderno parte da hist�ria que ela me conta. S�o pouco mais de 10 horas de uma manh� de domingo gelada e chuvosa em Buenos Aires. Estamos sentados em cadeiras de ferro com encostos pl�sticos dentro de um pequeno sal�o de paredes brancas e desbotadas.
A mulher divide a aten��o da nossa conversa com um prato pl�stico � sua frente servido de pequenos p�es e um copo quente de caf�. Beirando os 40 anos, Lorena mant�m um ar jovial com parte do seu cabelo escuro preso para tr�s e sua mochila preta com detalhes em rosa. Vestindo apenas uma cal�a de moletom cinza, blusa vermelha e jaqueta preta com capuz, a mulher parece bastante confort�vel, apesar do tempo terr�vel que castiga a capital portenha.
Jo�o Pina - jan.2008/The New York Times | ||
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Viciada mostra a droga paco, que ela comercializa, em favela de Buenos Aires |
A hist�ria de Lucero Lorena Vanessa, seu nome de batismo, � apenas mais uma em meio �s milhares que enchem as villas, como s�o chamadas as favelas e zonas de risco da Argentina. A mulher passa as noites em uma cama improvisada �s margens de Puerto Madero, tradicional endere�o dos mais caros restaurantes e bistr�s de Buenos Aires, e sobrevive da venda informal de produtos nas ruas da cidade. Lorena � m�e de cinco filhos, com quem aos poucos est� retomando contato. As crian�as vivem com a fam�lia de sua m�e na prov�ncia de San Luiz, a 794 quil�metros da capital.
O EFEITO
A forma descontra�da de falar e os inocentes sorrisos que exibe em intervalos de poucos segundos contrastam drasticamente com o teor dos relatos que descreve em minuciosos detalhes. H� tr�s anos Lorena batalha contra o v�cio em paco, uma droga disseminada entre as camadas mais pobres da Argentina. Assim como o crack, o paco � um subproduto da coca�na. A droga se resume em uma pedra, altamente t�xica, barata e com grau extremo de adic��o, consumida em cachimbos improvisados com latas e canos.
"Voc� coloca fogo na pedra e o efeito � imediato. Voc� surta, fica desesperado, completamente louco. A paranoia � muito grande, voc� fica olhando para todos os lados, achando que vai aparecer algu�m para te roubar, para te apunhalar", descreve.
O �xtase da tragada se extingue em minutos. A sensa��o de vazio e depress�o que seguem s�o os impulsionadores para consumir a pr�xima pedra, uma espiral de euforia e abstin�ncia que pode se estender por horas ou dias.
"A droga � muito mais forte que n�s. Ela nos controla, nos faz fazer muitas coisas, roubar, assassinar, sequestrar", exp�e Lorena, afirmando que j� chegou � consumir 20 mil pesos em paco, aproximadamente quatro mil reais, em um �nico dia.
Sem demonstrar se abalar e sempre com uma entona��o alegre, a mulher descreve a primeira experi�ncia com o paco, atrav�s de um amigo em uma casa abandonada, e todos os clich�s subsequentes de quem � dependente de uma droga extrema: o distanciamento do conv�vio familiar, fugas de casa, a rotina de sobreviv�ncia em meios a outros usu�rios e traficantes nas villas, e os pequenos delitos cometidos para sustentar o v�cio.
TRAG�DIA
A escalada no v�cio eclodiu em 2014. Mesmo gr�vida do s�timo filho, Lorena manteve a rotina destrutiva de consumo di�rio de paco e bebidas alco�licas. O abuso das subst�ncias causou a perda do filho que carregava no ventre pelas ruas de Buenos Aires. No mesmo dia, um telefonema da casa de sua m�e lhe avisara que um de seus filhos havia morrido eletrocutado enquanto jogava futebol com outras crian�as nas ruas de San Luiz.
"Foi um trauma, em um dia perdi dois filhos", resume em voz grave enquanto me encara fixamente com seus olhos castanhos durante um raro momento de seriedade. A culpa pela morte dos filhos poderia ter sido o pretexto para que Lorena se deixasse vencer de vez pelo paco. Ao contr�rio, a mulher encontrou na trag�dia toda a for�a que precisava para sair do seu inferno particular.
"Eu parei no dia seguinte por for�a pr�pria. Parei para que eu possa voltar a conviver com minha fam�lia, para que possa ver meus filhos de novo".
REFLEXO DA CRISE
O surgimento do paco nas zonas mais vulner�veis de Buenos Aires � mais um reflexo da grave crise econ�mica que assolou a Argentina na virada do novo mil�nio. A disparada vertiginosa da classe pobre do pa�s, alcan�ando pico de 70% em 2002, criou o cen�rio ideal para a dissemina��o da droga barata e de f�cil prepara��o.
Segundo os dados do Observatorio Argentino de Drogas (OAD), vinculado � Secretar�a de Pol�ticas Integrales sobre Drogas de La Naci�n Argetina (Sedronar), entre 2004 e 2010, houve um aumento no uso de drogas il�citas por parte da popula��o de 12 a 65 anos. O levantamento apontou o crescimento de 1,9% para 3,5% do uso de maconha e de 0,5% para 1,5% do n�mero dos usu�rios de coca�na. Ainda n�o havia dados precisos do consumo de paco, mas os pesquisadores estimam que o pa�s concentre aproximadamente 180 mil usu�rios da "droga dos pobres".
Apesar da retomada dos investimentos de capitais, a queda do �ndice de pobreza para 30% e o recente controle financeiro alcan�ado nos �ltimos anos, as sequelas causadas pelas pequenas pedras amareladas ainda � latente nas zonas perif�ricas do pa�s.
"Nem sempre o crescimento da economia est� associado � diminui��o da pobreza e do narcotr�fico. No anos 1990 houve um crescimento econ�mico, mas significou o aumento da desigualdade entre ricos e pobres e a explos�o do narcotr�fico", explica o doutor em Sociologia pela Universidad de S�n Mart�n, Daniel Schteingart.
Um outro levantamento feito pelo Observatorio de La Deuda Social Argentina (ODSA) da Universidad Cat�lica Argentina (UCA) em parceria com a funda��o Konrad Adenauer Stiftung, divulgado em abril deste ano, mostra que, em 2016, 2,9% dos jovens entrevistados havia usado paco ao menos uma vez na vida. O estudo ainda revela que 3,3% dos que admitiram usar drogas alguma vez consomem paco de maneira intensiva e 3,2% de forma ocasional.
Jo�o Pina - jan.2008/The New York Times | ||
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Mulher usa o paco em favela de Buenos Aires, na Argentina |
ATEN��O
"Eles aparecem todos os dias, pedem comida, �gua, roupas. Muitos n�o t�m fam�lia e v�m apenas para conversar, querem algu�m que lhes d� aten��o". Quem fala � Rios Elizabeth, uma das volunt�rias da Pastoral Social da igreja Inmaculado Coraz�n de Maria. O grupo integra uma rede de assist�ncia � popula��o de rua e zonas de risco de Buenos Aires, trabalho replicado em centenas de outros centros religiosos espalhados pela Argentina.
Sem distinguir ou fazer perguntas, os volunt�rios prestam aux�lio para todos que os procuram. Refei��es gratuitas, cadastramento em programas sociais, ajuda para reencontrar familiares e o encaminhamento de usu�rios de drogas para centros de tratamento s�o algumas das a��es realizadas pelas entidades.
"N�s procuramos vagas nas institui��es particulares e nas mantidas pelas igrejas. Muitos nos pedem ajuda para sair do v�cio, mas nem todos conseguem se recuperar. Aqueles que conseguem, n�s continuamos dando assist�ncia para evitar as reca�das tirando daquele ambiente que a pessoa estava inserida", detalha o irm�o M�rio Massim, respons�vel pela Pastoral Social.
Os volunt�rios da par�quia testemunharam a chegada do paco �s ruas e villas da capital portenha no in�cio dos 2000 e a trag�dia social que seguiu com a dissemina��o da droga entre as classes mais perif�ricas da popula��o. Habituados em prestar assist�ncia para milhares de adictos em narc�ticos, a Pastoral Social precisou se readequar para lidar com a nova demanda.
"Antes era apenas coca�na e maconha, ent�o o paco veio como uma onda. N�o h� distin��o de idade ou de g�nero dos usu�rios, alguns t�m 30, 40 anos, mas muitos s�o mais novos", lamenta Rios.
LA VILLA 31
As vielas estreitas e enlama�adas da Villa 31 formaram um territ�rio f�rtil para a propaga��o da "droga dos pobres". Longe da aten��o e interesses do Poder P�blico, o paco se disseminou como praga em meio aos barracos e tendas da mais famosa zona de vulnerabilidade social da Argentina. A comunidade est� incrustada em meio � regi�o central de Buenos Aires, fazendo margem com �reas nobres, como Recoleta e Palermo, e poucos minutos a p� da Casa Rosada, sede do governo nacional, Obelisco, Avenida 9 de J�lio, entre outros pontos tur�sticos da capital.
Da porta de casa, o l�der comunit�rio, C�sar Luciano Sanabria, acompanhou o estrago causado pelas pequenas pedras amarelas. Ele se mudou para a Villa 31 durante a adolesc�ncia, no in�cio dos anos a 1980, �poca que a comunidade j� era reconhecida como uma das mais violentas de Buenos Aires.
"O paco � como um c�ncer dif�cil de erradicar", pontua. "Sempre houve (venda e consumo) de maconha e coca�na, mas agora o paco � a principal droga da Villa. � uma droga f�cil de produzir e muito barata", complementa.
C�sar nos recebe em sua casa de tijolos � vista pintados em marrom escuro. Ele divide o espa�o com sua mulher e a primeira filha do casal, nascida h� um ano. A morada modesta tamb�m abriga o pequeno est�dio da Radio FM 88.1 - La Radio de La Villa 31, � qual � propriet�rio. Com um mate em m�os e sentado em uma poltrona confort�vel ao canto da sala escura e repleta de quadros, trof�us de campeonatos de futebol e objetos de porcelana, o morador apresenta um pouco do contexto da comunidade para quem n�o est� habituado �quela realidade.
"A Villa pode ser perigosa para os habitantes de outras regi�es, mas quem mora aqui se sente seguro. H� um c�digo: n�o se rouba dos moradores", garante, embasando seu argumento no n�mero de homic�dios registrados na comunidade nos �ltimos anos: segundo o morador, em 2016, foram 40 assassinatos, contra cinco nos primeiros sete meses de 2017. "Os crimes est�o relacionados �s bandas de narco (fac��es de traficantes), cada uma formada por pessoas da mesma nacionalidade. A principal causa da viol�ncia est� na guerra destes grupos pelos pontos de com�rcio de drogas", detalha.
A Villa 31 � a mais emblem�tica comunidade de Buenos Aires. As primeiras fam�lias invadiram a �rea, que at� hoje est� em disputa entre o Governo Federal e Administra��o Municipal, em 1929, e desde ent�o n�o pararam de chegar novos moradores. No in�cio dos anos 1990 uma crescente onda imigrat�ria de povos vizinhos, principalmente paraguaios e bolivianos, gerou um novo boom de crescimento, resultando na cria��o da Villa 31 Bis. Atualmente a comunidade conta com 32 hectares de extens�o e aproximadamente 90 mil habitantes, divididas em 12 bairros, seis de cada lado da Villa.
Uma rua suja, estreita e repleta de com�rcio divide as duas partes. Em meio � venda de peixes frescos, filhotes de coelhos vivos, frutas, roupas, aparelhos eletr�nicos e praticamente tudo que se possa imaginar, se aglomeram barracos de tijolos uns sobre os outros, alguns alcan�ado at� sete pavimentos. As edifica��es chamam a aten��o por suas cores berrantes, como roxo, vermelho e azul, e pelas velhas escadas em formato de caracol enferrujadas pelo passar dos anos.
"Pouca coisa mudou de l� para c�. A principal diferen�a est� na constru��o das casas, que antes eram feitas de madeira e compensado, e hoje se utilizam outros tipos de materiais".
PRODU��O SIMPLES
A produ��o do paco � como a do crack. Os traficantes utilizam as sobras do refinamento de coca�na como mat�ria-prima, acrescentam bicarbonato de s�dio e outros ingredientes, como veneno de rato, e "cozinham" a mistura em cima de uma colher. O processo simples e o uso de produtos de f�cil acesso permitem que qualquer barraco ou tenda sirva de laborat�rio. A droga � comercializada em pequenos inv�lucros de pl�stico, a custo de 50 pesos, aproximadamente 10 reais cada.
"� como um doce de leite. Voc� experimenta e quer de novo, n�o tem como parar", descreve Juan Domingo Romero. Jala Jala, como Juan � conhecido na Villa 31, transita com facilidade em meio �s ruas e vielas. Al�m de uma refer�ncia entre os moradores, o homem tamb�m � respons�vel pela organiza��o de uma esp�cie de feira livre realizada nos fins de semana em uma das entradas da comunidade.
Mesmo habituado a forte realidade de uma das zonas mais miser�veis de Buenos Aires, Jala Jala se mostra impressionado diante dos reflexos causados pelo paco na comunidade. "Muitos usu�rios s�o ainda crian�as, j� vi de sete, oito anos fumando paco. Eles fogem de suas casas e v�m para a Villa para fumar a droga", conta.
"Os usu�rios ficam como naquele programa...como � mesmo? Ah, o Walking Dead! Os paqueros (denomina��o dada aos usu�rios da droga) s�o como mortos-vivos andando pelas ruas".
PREVEN��O
O terceiro Bar�metro del Narcotr�fico y las Adicciones: Venta de Drogas y Consumos Problem�tico, realizado pela UCA em abril deste ano, apontou uma s�rie de propostas para controlar o constante crescimento dos �ndices de consumo de drogas no pa�s. Segundo o documento, � preciso criar pol�ticas de Estado a longo prazo e que transcendam o debate partid�rio e eleitoral.
"As ag�ncias estatais, as diferentes for�as pol�ticas e os atores sociais devem construir um consenso mais amplo, evitando usar a problem�tica dos v�cios em uma arena pol�tica-eleitoral", descreve o documento assinado por 27 especialistas de diversas �reas sociais.
O manifesto ainda frisa a necessidade de levar assist�ncia e debater o assunto junto �s camadas mais pobres e exclu�das da sociedade argentina, fortalecer o v�nculo com as institui��es que prestam servi�os sociais nas villas e dar aten��o especial aos mais jovens, especialmente os de idade entre 15 e 18 anos.
"� fundamental compreender que uma parte importante dos problemas tem como fundo a exclus�o social e a precariedade de exist�ncia, das quais os v�cios e o consumo de drogas s�o sintomas de um problema muito mais complexo".
As diretrizes apontadas pelos especialistas n�o s�o nenhuma novidade para os moradores da Villa 31. Cansado de ouvir muitas promessas e n�o enxergar nenhuma mudan�a, C�sar encara com desconfian�a e descren�a os novos discursos.
"As pol�ticas do Estado s�o nulas, h� muito tempo pedimos infraestrutura, que o crescimento seja acompanhado de pol�ticas sociais", exp�e. Com o nascimento da primeira filha, o l�der comunit�rio sonha com uma nova realidade, longe das ruas estreitas e enlama�adas da Villa 31.
"Eu queria sair do bairro, comprar um terreno em outro lugar. Aqui a situa��o � muito dif�cil. Se os pais n�o forem firmes, acabam perdendo seus filhos para as drogas, a gravidez na adolesc�ncia", lamenta.
GABRIEL BOSA � jornalista e participa do programa "Jornalismo sem Fronteiras", que leva jornalistas, estudantes de comunica��o e �reas correlatas a Buenos Aires para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondente internacional
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