Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Coronavírus

Somos insensíveis a 100 mil mortes?

A pandemia é a versão aguda de nossa tragédia crônica

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Na clínica, são conhecidos os casos nos quais a pessoa perde um ente querido, não esboça reação a altura do acontecimento, para depois colapsar frente a um procedimento odontológico. Um fato menor pode servir de índice para outra coisa e desequilibrar as defesas.

O país que convulsionou diante de R$ 0,20 a mais no valor da condução segue como zumbi frente a quebra da barreira de 100 mil mortos. Os centavos se prestaram a imantar um conjunto de forças até então inconscientes, cujos nefastos desígnios só se revelaram inteiramente a posteriori. A insensibilidade às mortes, por sua vez, também revela algo sobre quem somos e nossa história.

O sofrimento humano não é um dado absoluto, ele está ligado ao reconhecimento. Levamos anos de conscientização social e análise pessoal para reconhecermos que ser xingada e agredida não são provas de amor apaixonado, mas de uma relação abusiva e violenta. Anos para que as mulheres se reconhecessem vítimas e não culpadas por contrariarem homens que as humilham, espancam e matam.

A aterradora marca de 100 mil mortos —acrescida de milhares a cada dia—, embora revele uma das maiores tragédias vividas em nosso país, não angaria revoltas, pois há os que acreditam que a culpa pela centena de milhares de mortes é da natureza, de um vírus. Sim, o vírus vem da natureza, mas nós somos responsáveis pelo surgimento desse e outros vírus ao invadirmos cada vez mais ecossistemas selvagens. O Brasil, com seu histórico de desmatamento, comercialização e consumo irregular de espécies silvestres, está na linha de frente do surgimento de um novo vírus letal a qualquer momento.

A quem acredita que a cifra de mortos se trata de uma fatalidade e não do fato de que não temos ministro da Saúde, o presidente receita cloroquina, desincentiva o uso de máscara e faz pressão contra o isolamento —únicas práticas comprovadas para diminuir o número de mortes até que se produza a vacina. Repetindo: somos governados por um sujeito que é responsável direto e advertidamente pelo aumento astronômico do número de mortes ligadas à Covid-19 e que responde a isso com: “E daí?”, “gripezinha”, “não sou coveiro”, “tem medo do quê?”, “vamos tocar a vida”.

Na Argentina —país que nos serve de espelho quando interessa— tem ocorrido um sétimo das mortes que ocorrem aqui, já considerada a diferença populacional.

Crescemos ouvindo que Brasil é abençoado: não tivemos grandes guerras, não temos invernos rigorosos e a natureza é magnífica. Essa versão recalca que vivemos em guerra civil contra pobres e negros desde nossa fundação, sendo essa uma parte crucial de nossa formação como país. O Brasil “pacífico” é uma
invenção que serve para que qualquer reação à violência seja vista como ato antissocial e não reivindicação justa.

Secas e alagamentos, fruto da centenária omissão na administração pública, são entendidos como tragédias inevitáveis. Crimes ambientais previamente contabilizados pelas empresas —como o da Vale em Brumadinho— são tidos como fatalidade. A pandemia, que não nos comove a ponto de reagirmos, é a versão aguda da nossa tragédia crônica.

Não, o presidente não governa o Brasil, ele é apenas um genocida num país historicamente violento, cujos cidadãos se acostumaram a seguir suas vidas pisando em cadáveres. Composto de muitos que ainda acreditam morar em um país “tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”, enquanto assistem o demônio fazer a festa.

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