A ideia da primazia e do protagonismo na literatura brasileira é uma pauta bastante antiga. No passado, diversas polêmicas alimentaram a imprensa em todos os sentidos, para difamar ou para defender este ou aquele escritor.
E digo escritor, e não escritora, no sentido amplo do termo, porque, desde os tempos remotos, a literatura foi sempre uma arma produzida por homens brancos, da classe média e supostamente considerados letrados.
Parece que não está sendo diferente nos dias de hoje. As razões, de ontem e de hoje, continuam sendo as mesmas: a disputa por narrativas consideradas insofismáveis e o poder incontestável do establishment.
No século 19, como lembrou bem Cláudio Aguiar na brilhante biografia sobre Franklin Távora, esta divisão já existia. O cearense Távora, abolicionista, inimigo literário de José de Alencar, este escravista doente, propunha, para resolver problemas regionais, a divisão da literatura do norte da do sul.
Na verdade, era pura disputa de egos: tanto Távora, quanto Alencar disputavam a primazia do indianismo na literatura. O primeiro publicou o romance "Os Índios do Jaguaripe", de 1862, considerado primeiro romance do Nordeste, enquanto o segundo, "O Guarani", de 1857, o primeiro de sua trilogia.
A polêmica dos corifeus, além de gerar frutos —livros assinados por pseudônimos—, cansou a opinião pública, a exemplo de polêmicas que se arrastam dada a vaidade de uns e do forte maniqueísmo de outros.
O tempo passou e o tema da divisão da literatura saiu do campo do romantismo para o do simbolismo. De uma feita, o catarinense Oscar Rosas, quis separar "’velhos’ de ‘novos’", repaginando o "movimento norte e sul". A celeuma de Rosas alfinetava a todos, considerados por ele "velhos": Machado, Alencar, Silvio Romero, Araripe Júnior —a quem o catarinense chegou a desejar "morra Araripe!", enquanto Alencar, tido por parente do crítico, era tratado como "o tal inventor do tacape, dos boés e outros ferros da nossa literatura."
Por estas e outras, Rosas era visto, escrevendo, como "o fero Oscar". E uma quadrinha tangeu-lhe a fama: "Contra sova tão violenta/ Um conselho aqui eu dou:/ Araripe, aguenta, aguenta/ Que o Romero já aguentou".
Cruz e Sousa, o pai do simbolismo brasileiro, pobre, sulista, sofreu horrores enquanto viveu, nos seus 36 anos. Negro sem mescla de sangue europeu, falante de cinco idiomas, sem sotaque regional, trajando à francesa em plena Belle Époque carioca, teve reveses por ser de origem africana e escrever corretamente, inclusive em francês, ao contrário da maioria da população —branca, no caso.
Quando lançou seus livros —"Missal", prosa, e "Broquéis", versos—, a imprensa logo os glosou, dizendo "Os pretinhos-minas da cidade/ Um batuque de estranha alacridade/ Preparam com foguetes pelos ares!".
Além do desrespeito, a inveja da capacidade de elaboração estética de Cruz e Sousa era patente.
O mesmo vai acontecer no século seguinte com Carolina Maria de Jesus. Negra, com pouca escolaridade, vivia na favela do Canindé, quando foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas, que publicou o seu livro "Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada".
Com o sucesso retumbante do livro, logo vieram os gritos da turba inquieta, que Carolina também apelidou de invejosos. Embora oriunda "do soldo da escravidão", como se dizia, o mundo via qualidade no seu livro, enquanto no Brasil os críticos procuravam pelo em ovo: Carolina é analfabeta, não sabe escrever, é —exótica essas são algumas elucubrações dirigidas a ela.
Nascida em Sacramento, a mineira enfrentou a todos com outra obra, "Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-Favelada".
Eu tenho visto a polêmica em turno do nome e da obra de Itamar Vieira Júnior com muita tristeza. A obra dele não é perfeita; ele não é perfeito —penso que nem deseja. Machado, Lima Barreto, Conceição Evaristo —quem mais?— sofreram e sofrem com as dissensões de leitores e críticos.
Na crítica dos autores do passado, as desavenças localizavam-se entre as literaturas do sul contra as do norte. A do norte, era acusada de abordar lendas e tradições populares; a do sul, era vista cheia de estrangeirismos e antinacionalismos. Não vamos esquecer: Jorge Amado foi combatido e Lima Barreto foi ridicularizado.
Quem está certo nesta polêmica? Quem ganhou com isto? Penso que ninguém.
Trago aqui, para refletirmos, um pensamento da escritora nigeriana Chimamanda Zgozi Adichie, quando diz: "Mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que se tornarão. A consequência de uma única história é essa: ela rouba das pessoas sua dignidade. Faz o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada difícil. Enfatiza como nós somos diferentes ao invés de como somos semelhantes."
Tudo o que se tem dito, até agora, não é exatamente sobre o baiano Itamar Vieira Júnior, é sobre como, a todo momento, lutamos para ser dessemelhantes —e dessemelhantes, como uma vantagem, não como uma razão de ser.
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