A imagem em movimento mostra um pássaro filhote com mais cores e plumas que uma escola de samba inteira, pés mergulhados num fio d’água tão cristalino quanto uma taça cheia de San Pellegrino ao sol do Mediterrâneo.
Parecendo desconfortável com a proximidade da câmera, mas não a ponto de fugir, o bichinho nos mira com olhos de desenho animado. É como se dissesse: "Pode existir criatura mais linda e cativante do que eu?".
Reparamos então, com assombro, que o festival de cores em seu peito e suas asas se organiza em pinceladas desconcertantes que lembram um pintor atormentado, talvez Van Gogh; ao mesmo tempo, explode em mil tons alegres e solares, como numa tela naïf.
O que dizer diante de imagem tão singular? O que muitas pessoas têm dito, nas redes sociais, são variações em torno desta ideia emocionada: "Ah, como a natureza é incrível! Como ela é generosa com a gente!".
Ah, e como essas pessoas estão erradas! Há tanta "natureza" no filhote com plumagem de catálogo de loja de tintas quanto num pacote de Baconzitos. O mesmo pode ser dito dos seus colegas.
Espera aí —colegas? Sim: mergulhando meio palmo no tema dos pássaros artificiais (digitando "AI birds" no Google, por exemplo), vamos descobrir que essas criaturas de fantasia já são incontáveis; se ainda não superaram em número as espécies do mundo ornitológico, isso parece uma questão de tempo.
Justiça seja feita: a maioria dos bichos é tão bizarra que não parece querer enganar ninguém. Como nosso filhote fofo, quase todos gritam, berram "inteligência artificial" em cada pixel.
Quando os pixels acabam, continuam a berrar eternidade afora.
No entanto, por alguma razão a ser desvendada, parte considerável da nossa espécie parece incapaz de ouvir a gritaria. A aceitação de tudo o que a IA produz é, para essa turma crédula, uma espécie de reflexo.
Quando eu digo tudo, quero dizer tudo mesmo. Até o que deveria ter a falsidade denunciada pela cretinice e pelo grotesco, como aquela imagem de meninos africanos com sorrisos largos, seis ou sete dedos em cada mão, desenhando no ar em impossível contorção de membros uma imagem de Cristo. Suspiram os crédulos: "Ah, que lindo!".
Depois de tantos anos vendo pessoas letradas que merecem (mereciam?) meu respeito compartilharem frases de autoajuda e para-choque de caminhão como se fossem de Drummond e Clarice, talvez eu não devesse me chocar. Mas me choco.
Não sou o único. O linguista Marcos Bagno é outro que anda indignado. Esta semana, a propósito da comoção provocada por uma imagem de "Chico Buarque criança", explodiu no Facebook: "Acordem para a vida, criaturas! Será que vamos mesmo ficar reféns da robozada?".
Não se trata de condenar a crescente presença da IA em nossas vidas —o que eu talvez fizesse, caso não fosse de uma inutilidade absoluta. Os robôs não vão mais embora.
A questão é menos de tecnologia que de psicologia: diante da inteligência artificial, a humanidade escolherá ser naturalmente burra? Qual é a diferença entre acreditar em falsificações tão cafonas, tão kitsch, e jurar que alienígenas do bem virão nos buscar se todos tomarmos formicida?
Ou, num roteiro mais próximo da realidade mundial neste momento, que palhaços sinistros como Trump e Milei vão nos salvar?
Sim, os robôs vieram para ficar. Isso não significa que a gente deva se oferecer a eles bem temperadinhos, assados na manteiga com batatas.
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