Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Esclarecimento sobre o 'denegrir'

A etimologia não tem a palavra final, mas nos ajuda a manter a sanidade

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No último fim de semana, publiquei na Ilustríssima um artigo de grande repercussão sobre como as patrulhas linguísticas atiram no próprio pé ao desprezar a verdade histórica.

Fake news etimológicas –como a que cerca a locução "nas coxas", entre muitas outras– acabam por dar munição a quem, fingindo que o idioma é uma entidade impoluta e imutável, nega legitimidade ao revisionismo linguístico.

Com sua história de violência contra a maior parte da população, o Brasil tem um gigantesco dever de casa pela frente se quiser virar um país decente –o que inclui, sim, um debate honesto sobre preconceitos cristalizados nas palavras.

Coletivo Nós Artivistas pintou a frase "Silêncio é apagamento" no Minhocão, em São Paulo, dias após o assassinato de Beto Freitas em Porto Alegre - @VolpeImagens/Nós Artivistas/Divulgação

A tarefa é cascudíssima. Estamos condenados a caminhar em campo minado e entreter uma conversa metalinguística sem fim. Não teremos paz, mas a língua está acostumada com a bagunça.

Como máquina de produção de sentido, ela nunca teve dono identificável nem terá. Pertence a todos os falantes. Não faltam tentativas de controlá-la, mas são inúteis. É ingênua a crença de que dicionaristas e gramáticos a mantenham sob tutela –eles correm atrás.

Nesse quebra-pau, a etimologia, o estudo sério sobre a origem de palavras e expressões, não tem a palavra final, mas é uma carta de grande valor que, descartada, pode instaurar a insanidade.

Um exemplo de insuficiência da etimologia: o Brasil é um país tão racista –e tão sonso ao negar isso– que um verbo como "denegrir", que tudo indica ser isento de conotações raciais em sua origem, dificilmente deixará de ser entendido assim.

Acho justo apontar isso. Como no caso da proverbial mulher de César, não basta a palavra ser honesta, ela deve parecer honesta –no caso, livre da suspeita de ser veículo de preconceitos, segundo um pacto socialmente negociado.

Como sabe qualquer falante que não ande muito distraído, são incontáveis as problematizações desse tipo. Algumas eu compro, outras não. O medo atávico da escuridão marca nossa espécie, e em grande parte associar o escuro ao negativo e o claro ao positivo vem daí. E agora?

Agora é caso a caso. Se "denegrir" deve ter problemas para se safar no tribunal, acredito que o verbo "esclarecer", que nunca teve sombra de conotação racial, esteja a salvo. Que o bom senso possa nos ajudar.

Tudo isso torna ainda mais importante separar o joio do trigo, a informação histórica de qualidade da invencionice empolgada. A etimologia não lavra a sentença, mas é nossa principal fonte de informação na hora de inventariar as provas.

No caso da palavra mulato, por exemplo, o debate –o mais interessante dos últimos tempos na praia do revisionismo– já poderia prescindir da incerteza etimológica de quem insiste na tese de uma origem no árabe "muwallad".

Essa corrente existe. No entanto, mais que minoritária, é marginal. A origem de mulato no latim "mulus" (mulo, macho da mula), por meio do espanhol, é aceita por todos os nomes referenciais da etimologia, do catalão Joan Corominas ao português José Pedro Machado, passando pelos brasileiros Antenor Nascentes e Antônio Geraldo da Cunha. Os dicionários Houaiss e Oxford (para o inglês "mulatto") reforçam o time.

Não se pode nem dizer que seja um 7 a 1 etimológico. Está mais para 70 a 1. Se o debate é infinitamente complexo, isso nos obriga a ser mais rigorosos com as informações e não o contrário.

Dou uma folga aos leitores. Nos vemos em janeiro!

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