“E, então, conversaremos sobre muitas coisas e você fará passeios e verá a Cordilheira dos Andes, muito alta, muito bonita. No inverno, ela fica branquinha, como se fosse um grande Papai Noel de barbas bem alvas, imensas e brilhando nos dias de sol.”
A bela imagem natalina é do educador pernambucano Paulo Freire (1921-1997), em carta de 1967 a uma prima, Nathercia Lacerda, que tinha então nove anos de idade.
Em 2016, Nathercia publicou a correspondência com o primo no livro “A Casa e o Mundo Lá Fora” (Zit). A carta citada aqui foi publicada também em “Cartas Brasileiras” (Companhia das Letras), livro que organizei.
Paulo Freire estava no exílio chileno. Três anos antes, o golpe militar tinha abortado o ambicioso Plano Nacional de Alfabetização do governo João Goulart, que ele encabeçava com resultados, mais que promissores, entusiasmantes.
Nosso analfabetismo real e funcional exibe até hoje níveis incompatíveis com os de uma sociedade razoavelmente decente e justa. Perdemos aquele trem.
Mas parece não bastar que tenhamos perdido o trem. É preciso garantir que continuemos a perdê-lo nas
próximas estações, futuro adentro —agora que o sentido da linha se inverteu e vamos de fornalha alta para trás.
E tome pau no Paulo Freire!
O autor de “Pedagogia do Oprimido” é um dos bichos-papões prediletos do bolsonarismo, mas o que eles malham é um cartum grosseiro, o do “doutrinador comunista” que, com sua “ideologia de gênero”, teria construído nossa educação pífia. Tudo grotescamente distorcido.
Goste-se ou não de suas posições políticas de esquerda, Freire é um dos mais influentes pensadores da educação da história —o mundo sabe disso. Merece dos brasileiros, de preferência, gratidão e louvor; se isso não for possível, ao menos respeito.
Como vimos, Bolsonaro o chamou de energúmeno. O gesto foi tão antinatalino que me fez parar para pensar. Um modo de lidar com essas bombas de fumaça que o governo passou o ano produzindo à média de duas por dia é não lhes fazer eco.
Há sabedoria nisso, reconheço, mas... Caramba, o presidente da República chamou Paulo Freire de energúmeno. Bolsonaro. Paulo Freire.
Energúmeno.
Em sua acepção histórica, energúmeno é “indivíduo possuído pelo demônio”, do grego energoúmenos, “influenciado, dirigido”. Em sentido expandido, figurado, é “pessoa que age com violência, de forma irracional, brutal; desequilibrado, desatinado” (Houaiss).
“É uma coisa boa, Natercinha, que a gente nunca deixa de ser menino. Os homens atrapalham as coisas, complicam tudo”, escreve o primo Paulo do Chile. “Se os homens não deixassem morrer dentro deles o menino que eles foram, se compreenderiam melhor.”
A terceira e mais popular acepção de energúmeno é “indivíduo ignorante; boçal, imbecil”. Passa longe, não? Mas se não é de Freire, de quem fala Bolsonaro? Ou para quem?
Creio que para o fundo da caverna. O primeiro eco na câmara das redes sociais é o de sua própria voz: o presidente grita energúmeno para o espelho.
Ainda bem que temos a carta a Natercinha para salvar o espírito natalino: “Um dia, eu fui ver a neve cair perto da casa azul onde eu moro. Saí de dentro do carro, todo agasalhado, com capote, chapéu, luvas, porque fazia muito frio, e fiquei maravilhado como você fica quando papai e mamãe trazem uma boneca para você.”
A cristãos e não cristãos, religiosos e não religiosos, esquerda, direita, norte e sul, a coluna deseja um feliz Natal.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.