A semelhança entre o fato e o flato é, para não fugir do clichê, mera coincidência. As duas palavras descendem do latim, mas a primeira, além de mais importante, é um século e meio mais antiga (do século 16). Mesmo assim, há uma funcionalidade abençoada no fato de só uma letrinha separá-las.
Primeiro, um pouco de etimologia. "Fato" vem de "factum", particípio de fazer. No sentido original, é o que foi feito, só isso. Uma vez ocorrido, o fato se impõe de forma indiscutível ao entendimento. A palavra hoje tem um leque de acepções mais amplo, mas conserva seu núcleo peremptório. Fatos são fatos. Negá-los é estúpido e vão.
Aí vem o flato. Vocábulo culto, ainda que fedorento, tem uma carga ambígua, entre a repugnância e o riso, que a língua popular prefere depositar em termos chulos como "peido" (na versão adulta) e "pum" (na infantil). Vem do latim "flatus", sopro, bafo. O verbo inflar, que nos deu a inflação, é da mesma família.
A semelhança entre o fato e o flato é útil porque permite, pela via do humor, recuperar alguma racionalidade quando tantos optam por substituir fatos —como a redondez da Terra, os benefícios da vacinação, uma ampla pesquisa da Fiocruz sobre uso de drogas que custou R$ 7 milhões— por emissões ruidosas de gás.
Não defendo a piada pela piada, embora esta também tenha valor. Como sabe há décadas a psicologia cognitiva, os seres humanos tendem a se aferrar a opiniões pré-formadas, descartando os fatos que a contradizem e se agarrando a qualquer fiapo de informação —ou opinião, chute, delírio— que as reforce.
É o tal "viés de confirmação", ao qual ninguém está imune. Se isso não depõe a favor da racionalidade de uma espécie que sempre se orgulhou de ser racional, bem-vindo a 2019! Quem a esta altura do baile vai se declarar surpreso?
No recém-lançado livro "The Enigma of Reason" (O enigma da razão), os cientistas cognitivos Hugo Mercier e Dan Sperber sustentam, com base em pesquisas feitas na França e na Hungria, que a razão humana é um traço evolutivo mais ligado à sociabilidade do que à solução rigorosa de problemas.
"A razão é uma adaptação ao nicho hipersocial que os humanos desenvolveram para si", afirmam. É no quadro das interações sociais que o viés de confirmação se explicaria em termos evolutivos. O equilíbrio no interior dos grupos de macacos dotados de polegar opositor nunca deixou dúvida: é melhor estar errado e ganhar discussões, mantendo o poder, do que perdê-las por se curvar ao "certo".
Se o desprezo aos fatos pode ter nos ajudado a chegar até aqui, como sustentam Mercier e Sperber, hoje está claro que a instrumentalização desse traço pelas redes sociais, com suas bolhas psicóticas de confirmação turbinada, virou um problema.
Não duvido que a ideia de "fatos alternativos" seja a maior ameaça à sobrevivência da espécie desde a invenção das armas nucleares. Acontece isso de virar o fio, diz a dupla de pesquisadores, quando "o meio ambiente muda depressa demais para que a evolução natural o acompanhe".
Aí está. O humor bufo do "f(l)ato" é funcional porque pode auxiliar a razão, fraca diante da kriptonita das redes sociais saturadas de confirmação, numa tarefa que promete ser crucial para o futuro da espécie: alertar os negadores de fatos para o risco de trocá-los por flatos, que algum dicionário futuro, se futuro houver, quiçá definirá como emanações malcheirosas de burrice.
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