Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Semiótica do chapéu

Ficamos órfãos da peça de roupa que melhor rendia homenagens

Não sei quem foi que, um dia, pelo final dos anos 1950, saiu de casa sem chapéu e disse: "Chega. Eu nunca mais vou usar isso na cabeça". Mas, pelos vistos, a rebeldia daquele gesto era tão urgente que todo o mundo concordou bem rápido.

Até ali, as pessoas andavam na rua de chapéu, iam ao teatro de chapéu, iam comprar chapéu de chapéu. De repente, passaram a andar de cabeça descoberta. O calvário do chapéu não é um fenômeno de moda. A moda faz com que as camisas de hoje sejam diferentes —para pior, normalmente— do que eram há dez anos.

Ilustração
Luiza Pannunzio/Folhapress

Mas os estilistas não ousam propor a extinção das camisas. Ora, foi isso que aconteceu ao chapéu. De um dia para o outro, acabou rejeitado, mas não por falta de qualidade, de beleza, ou até de utilidade. Os fabricantes de chapéus devem ter precisado de apoio psicológico. Por que é que as pessoas tinham deixado de querer usar chapéus? Por que é que não tinham ganho aversão às calças? Ninguém sabia.

Na verdade, foi uma injustiça. Há gestos dramáticos que só se podem fazer com o chapéu. O que é que a gente atira ao ar na formatura, ou quando alguém faz um gol depois de driblar a zaga toda? Até nós, que nunca usamos chapéu, sentimos uma vontade incontrolável de atirar alguma coisa ao ar nessas ocasiões, mas não sabemos o quê.

O chapéu era todo um sistema de comunicação. Usado de forma normal, revelava dignidade. Inclinado para trás, indicava descontração e simplicidade. E, inclinado para a frente, exprimia mistério e sedução. Sem chapéu temos, além disso, de encontrar uma solução urgente para, por exemplo, quando estamos a cavalo e queremos despedir-nos de alguém ao longe. Antigamente, era só agitar o chapéu enquanto nos afastávamos, a caminho do pôr-do-sol.

Agora, é um momento constrangedor, só superado por aquele em que alguém morre à nossa frente. Costumava ser fácil: a gente tirava o chapéu e punha os olhos no chão. Era ótimo: o chapéu oferecia humildade, respeito e uma ocupação para as mãos. Era a peça de roupa que melhor rendia homenagens. Tirar o chapéu quando alguém morre sempre foi muito melhor do que, por exemplo, descalçar um sapato. Eu experimentei. Ficamos órfãos do serviço do chapéu. Gostaria, por isso, de tirar o chapéu ao chapéu. Infelizmente não posso, porque não uso.

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