A bela reportagem do colega Claudinei Queiroz sobre a relação entre mudanças ambientais no território paulista e o atual surto de febre maculosa na região de Campinas é uma das inspirações para a presente coluna. Em seu texto, ele mostra como o desmatamento, o extermínio de carnívoros de grande porte e o cultivo intensivo da cana e do milho perto de cursos d’água levou ao crescimento da população de capivaras e, ao que parece, a um risco aumentado da transmissão da doença por meio dos carrapatos que esses grandes roedores carregam.
Ao menos por enquanto, não há motivos para imaginar que esse processo acabe transformando a febre maculosa num problema generalizado de saúde pública. As chances de contato direto com os invertebrados que carregam a bactéria causadora da moléstia continuarão sendo relativamente muito baixas no caso de uma população já tão urbanizada quanto a nossa. E é de se esperar que médicos e pacientes fiquem mais alertas a sintomas e situações de risco, lançando mão de antibióticos rapidamente e evitando o pior.
Mesmo assim, as mortes trágicas dos últimos dias são casos extremos de um fenômeno muito mais amplo. Para tentar explicá-lo, vou me arriscar a fazer uma mistura de Charles Darwin e Ariano Suassuna (ainda que o saudoso dramaturgo paraibano não fosse um grande fã da teoria da evolução, infelizmente).
Em seu clássico "O Auto da Compadecida", Suassuna descreve a morte como a força que "iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados". Bem, os micro-organismos ou vírus que causam doenças infecciosas muitas vezes não matam suas vítimas — há até quem diga, de maneira um tanto simplista, que micróbio "esperto" é aquele que aprende a não matar seus hospedeiros. Mas faz sentido aplicar a eles a definição de Suassuna: sempre que possível, eles acabam funcionando como essa teia que conecta diferentes seres vivos num só rebanho, saltando de galho em galho pela Árvore da Vida.
E é aqui que Darwin sobe ao palco do nosso auto. Se pensarmos que micróbios — como a bactéria da febre maculosa — não passam de máquinas reprodutivas (o que, é claro, vale para tudo o que é vivo), a relação que desenvolvem com seus hospedeiros mais comuns, como os carrapatos e capivaras, envolve achar o equilíbrio entre continuar se reproduzindo e se espalhando, de um lado, e evitar que esse processo danifique suas vítimas a ponto de impedir que a multiplicação dos micróbios continue.
No entanto, às vezes calha de um organismo bem diferente dos hospedeiros usuais acabar se apresentando diante do micróbio ou vírus — um ser humano que passou pelo trecho de mato onde antes se deitara um bando de capivaras, digamos. Nesses casos, a linha que separa uma oportunidade evolutiva (a chance de colonizar com sucesso um novo tipo de organismo e obter ainda mais sucesso na reprodução) de um beco sem saída é tênue.
No caso da febre maculosa, o beco sem saída tem predominado. Para as bactérias dos carrapatos, somos mero desvio de rota, e isso talvez explique em parte a agressividade da doença no nosso organismo: não houve convivência suficiente para que a bactéria se adaptasse a passar mais tempo, com sintomas mais sutis, dentro do corpo de um ser humano.
Acontece que bagunçar a teia natural das relações de longo prazo entre causadores de doenças e hospedeiros é uma das receitas para gerar novas pandemias, a exemplo do que, ao que tudo indica, aconteceu no caso da Covid-19. Eis mais um argumento egoísta, mas pelo menos sensato, para refrear a destruição dos ambientes naturais que restam no país. Continuar com isso pode trazer visitantes ainda mais incômodos para o interior das nossas células, talvez bem mais hábeis na arte de se adaptar à nova casa.
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