Na cabeça da maioria das pessoas, a história profunda da Amazônia, antes da chegada dos europeus, muito provavelmente é imaginada como uma imensa pasmaceira. Pouca gente, poucas mudanças e um mato que não acabava mais teriam sido a tônica da região ao longo de milhares de anos. O DNA de uma única etnia amazônica, entretanto, é o suficiente para jogar por terra quaisquer resquícios dessa imagem.
A julgar pelo que revelam os dados de um novo estudo sobre o genoma dos ashaninkas, povo que pode ser encontrado tanto em aldeias no Acre quanto em várias comunidades na Amazônia peruana, o cenário real foi completamente diferente. O contato com outras etnias muito distintas, a mobilidade em escala continental e a mistura entre diferentes povos foi a regra, e não a exceção, ao longo de milhares de anos, revela a pesquisa.
O trabalho saiu recentemente no periódico científico Current Biology e foi liderado por Marco Rosario Capodiferro, da Universidade de Pavia, na Itália. Também participaram do estudo pesquisadores de outros países europeus e dos EUA, além de uma dupla de cientistas ligadas à Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Leonor Gusmão e Filipa Simão.
Entre os povos amazônicos, os ashaninkas se destacam pelo uso de longas vestes de algodão, as "kushmas". O termo vem do quíchua, o idioma mais falado no antigo Império Inca. De fato, o contato com as poderosas civilizações dos Andes parece ter caracterizado em parte o passado dos ashaninkas, cujos assentamentos funcionavam como uma espécie de intermediários entre esses impérios e os grupos da Amazônia mais a leste, comerciando os produtos da floresta —que incluíam itens cobiçados, como penas de araras e peles de onças-pintadas— mas também resistindo ao avanço imperial.
Seria natural supor, portanto, que a etnia tivesse influências consideráveis dos povos andinos em sua composição genética, mas o cenário descortinado pelo estudo é muito mais complicado. Ao analisar o DNA de 51 ashaninkas do Peru, a equipe de cientistas descobriu, em primeiro lugar, que eles podem ser divididos em pelo menos duas subpopulações principais, com perfis genômicos significativamente distintos.
Um dos subgrupos, conforme o esperado, mostra mais elos com as populações dos Andes e da costa peruana, no litoral do Pacífico. Mas o outro apresenta afinidades maiores com indígenas da costa atlântica da América do Sul, como os ka'apor (que hoje vivem no Maranhão), e também com grupos da parte mais meridional do continente, chegando até a Argentina.
De quebra, também há indícios do parentesco dos ashaninkas com os indígenas que viviam no atual Caribe antes da chegada de Cristóvão Colombo em 1492. A conclusão mais plausível, segundo os cientistas, é que a composição genética do grupo tenha recebido contribuições da costa atlântica e do Cone Sul e, por sua vez, eles ou seus parentes próximos tenham contribuído para o povoamento das ilhas caribenhas.
Volto a frisar: trata-se de uma única etnia, em meio às centenas ou mesmo milhares que existiam antes da invasão europeia. O que me impressiona é como dados sobre essas sagas estão sendo produzidos pela ciência em ritmo cada vez maior nos últimos anos, como volta e meia conto neste espaço. Pense em quantas histórias ainda esperam para ser contadas. O passado jamais será como era antigamente.
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