Governar o Brasil é difícil, como sabe Jair Bolsonaro, o que ajuda a explicar por que ele nunca se dispôs a fazê-lo. Passou o mandato a pregar golpe de Estado na esperança de que uma camarilha militar administrasse o país em seu lugar, candidato de sempre a "Cavalão" de parada de uma ditadura.
Em dois dos quatro anos, convidou os brasileiros a dançar com a morte, mesmo sem sepultura. Por que obteve quase metade dos votos válidos? Perguntem àqueles que flertaram com ataques cotidianos às instituições desde 2013, especialmente a partir de 2014, na vigência da Lava Jato, e às ilegalidades na boca da urna.
Lula constata de novo que tal ofício está longe de ser sopa no mel. Conquistar o recorde de quase 61 milhões de votos chega a ser mais fácil do que obrigar críticos isentos —é claro!— a cumprir ao menos as exigências que se fazem a estudantes do Enem na prova de redação. São obrigados a apresentar uma solução ou proposta de intervenção para o problema apresentado. E estas devem respeitar os direitos humanos.
Nada contra os direitos humanos, por óbvio. Mas sempre me opus a que se obrigue adolescentes de 16, 17 anos, que ainda lidam mal com as questões do "ser contra o não ser universal", a oferecer respostas para problemas ancestrais. Se o mundo que os precedeu e os gerou não o fez, por que a eles se impõe tal incumbência? Ademais, tenho uma restrição que remete ao livre pensar: e se o candidato avalia ser falsa a questão?
O governo furou o teto de gastos cinco vezes. Era inevitável no enfrentamento à pandemia. Mas o fez também a três meses do pleito. Recorreu ainda a uma malandragem ao cassar arrecadação dos Estados para subsidiar os combustíveis. As gambiarras fiscais foram tidas como espertezas, e a dupla Bolsonaro-Guedes seguiu a ser a preferida desse ente de razão chamado "Uzmercáduz".
Deveriam valer para os adultos que escrevem sobre os destinos do Brasil as exigências que se fazem às quase-crianças do Enem. Se eu gostaria de livrá-las do fardo de apresentar respostas, quero impô-lo aos vetustos pensadores que evidenciam saber tudo o que Lula não pode fazer —é o tal "problema"—, mas se dispensam de apresentar "solução" ou "proposta de intervenção". Existe alguma saída para os R$ 600 do Bolsa Família, o aumento real do salário-mínimo —abaixo do prometido por Bolsonaro no debate da Globo, note-se— e a retomada do programa Farmácia Popular que não seja o furo do teto?
Havendo a necessidade de aprovar uma PEC, há alguma forma de fazê-lo sem conversar com o tal "Centrão"? Os adultos que ainda estão na sala deveriam dizer como é que Lula poderia mandar Arthur Lira plantar batatas sem que, assim, conectasse parte substancial do Congresso com os arruaceiros que a Defesa tenta estimular com seu relatório pusilânime. Não temos 17 anos. A nós se impõe a responsabilidade de ir além das fofocas desse tal "Uzmercáduz".
"Se o golpismo existe, então tudo é permitido?" Não. Mas fico atento. Até me desculpo se pareço leniente ao considerar boa a ideia de retirar os recursos do Bolsa Família do limite de gastos. Na minha inocência de candidato do Enem, eu o imporia para o resto e criaria um subteto, então, para esse benefício. Em vez de negociar a cada ano uma gambiarra nova, criar-se-ia uma regra para andar no labirinto na expectativa de um novo marco de âncora fiscal.
"Ah, mas note a recaída esquerdista de Lula, a opor estabilidade fiscal ao sofrimento das pessoas, defendendo "um novo paradigma". Pois é. Sugiro que se olhe com um pouco mais de pudor para o "o celeiro do mundo" em que 30,1 milhões passam fome e 125 milhões vivem em insegurança alimentar. Nem sei se prospera, mas não é emenda feita a três meses da eleição, na certeza de que o STF engolirá uma ilegalidade sob o custo de sobrevir o caos.
Governar o Brasil é difícil, sobretudo quando se tem o compromisso de manter a ordem democrática e atender à demanda vitoriosa nas urnas. "Reinaldo, viu o número d’Uzmercáduz?..." Vi. Se, amanhã, começar a chover maná, as ações do agro despencam. O governo tem de ter um horizonte de quatro anos, não dos 90 dias que antecedem a eleição.
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