Otavio Frias Filho, diretor de Reda��o da Folha, � autor de "Queda Livre" (Companhia das Letras, 2003) e "Cinco Pe�as e Uma Farsa" (Cosac Naify, 2013). Escreve aos domingos, mensalmente.
Gramsci, esquecido e atual
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O pensador italiano Antonio Gramsci |
Ainda sobre o tema do centen�rio da Revolu��o Russa, � oportuno registrar uma lacuna nas celebra��es, a do pensador italiano Antonio Gramsci. Ele foi n�o s� um dos dois marxistas mais inventivos do s�culo 20 (o outro seria o h�ngaro Gy�rgy Luk�cs), mas um pioneiro ao intuir as defici�ncias sobre as quais assentava a experi�ncia sovi�tica. A cr�tica de Gramsci, embora impl�cita, tinha mais alcance que a do pr�prio Tr�tski e sua teoria do desvio burocr�tico.
� verdade que est� saindo agora "Gramsci e a Revolu��o Russa" (M�rula Editorial), colet�nea de ensaios de especialistas brasileiros e italianos, e que h� meses foi publicado um gigantesco "Dicion�rio Gramsciano" (Boitempo), ambos trabalhos instrutivos, mas apolog�ticos, voltados a um p�blico de iniciados e militantes.
O pr�prio Gramsci, por�m, est� mal editado. As tradu��es de Carlos Nelson Coutinho est�o em parte esgotadas; falta, sobretudo, uma reedi��o cr�tica desse autor inesgot�vel. Escrita quase toda na precariedade extrema dos dez anos que passou numa pris�o fascista, at� ser libertado para morrer de tuberculose em 1937, aos 46 anos, sua obra s�o anota��es iluminadoras sobre uma imensidade de t�picos, em geral culturais (como Nietzsche, sua �rea de origem era a filologia).
Gramsci extrapola as fronteiras de uma seita intelectual e pertence ao pensamento humano. Sua escrita, como a do pr�prio Marx, � pl�stica e imaginativa, sem aquele automatismo determinista de tantos marxistas que faz a hist�ria parecer t�o viva quanto um teatro de marionetes. Sua maior contribui��o ter� sido enfatizar que o poder repousa sobre instrumentos coercitivos, mas nunca dispensa outra dimens�o, que se expressa como persuas�o e relativo consentimento.
A dimens�o coercitiva concerne ao Estado, mas a "sociedade civil" (economia e institui��es privadas) � o palco onde se disputa em �pocas de crise a "hegemonia" (dire��o mental da sociedade), exercida habitualmente pelo "bloco hist�rico" (alian�a de classes e grupos antag�nicos acoplados a um mesmo modo de produ��o) por meio de uma ideologia elaborada pela camada de "intelectuais".
Estes podem ser "tradicionais" (quando resqu�cio de modos de produ��o extintos, que por isso aparentam autonomia social; por exemplo, o clero cat�lico) ou "org�nicos" (quando surgem em resposta a demandas de uma classe ascendente, como t�cnicos, cientistas, gerentes e publicit�rios, no caso da burguesia). Quanto ao proletariado, seus intelectuais haveriam de se formar no partido, que assim aparece como pr�ncipe moderno, numa releitura do precursor da ci�ncia pol�tica, Maquiavel.
As percep��es de Gramsci v�o do espec�fico ("a escola � uma luta contra o folclore", no sentido de conhecimento irrefletido) ao mais geral, como a no��o de "revolu��o passiva". Trata-se das moderniza��es econ�micas promovidas n�o por uma subleva��o social, mas pelo pr�prio partido da ordem, com pouca mudan�a na estrutura social ("revolu��es sem revolu��o" que o leitor da hist�ria brasileira conhece de cor e salteado).
Quando insistia que os comunistas italianos deveriam obter a hegemonia, esse intelectual cedo convertido em dirigente partid�rio estava oficialmente falando de uma sociedade civil superdesenvolvida, como a italiana. Mas ficava subjacente a ideia de que os revolucion�rios russos, vitoriosos no surpreendente assalto ao poder, teriam de se manter nele por meios cada vez mais coercitivos, porque n�o tiveram tempo nem interesse em conquistar consentimento.
Gramsci nunca chegou a ser um dissidente, embora suas cr�ticas ao sectarismo criminal das lutas entre fac��es bolcheviques fossem conhecidas em Moscou e lhe tenham valido, nos �ltimos anos, isolamento por parte dos camaradas italianos. Ele definhava na pris�o, escrevendo. A sobreviv�ncia de sua obra � devida � cunhada russa, Tatiana Schucht, que salvou seus numerosos "cadernos do c�rcere".
Sua atualidade se deve ao menos a dois motivos. A esquerda, depois de tantas aventuras frustradas, entendeu que o programa socialista para a economia funciona mal e concentrou as lutas nas batalhas culturais de cunho identit�rio. A direita, depois de cinco d�cadas de hegemonia progressista, seja no �mbito mundial, seja no nacional, volta a articular um discurso cultural conservador. Gramsci � o autor por excel�ncia da pol�tica tomada como cultura.
Com bo�alidade insuper�vel, o promotor fascista que pediu a condena��o do deputado Antonio Gramsci em 1926 escreveu que "precisamos fazer esse c�rebro parar de pensar por 20 anos". Oitenta anos depois de desaparecer, aquele c�rebro continua a pensar na mente de quem o l�.
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