Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Muniz Sodré

Madonna, uma diva sintética

Energia libertina da cantora pop americana perdeu o impulso libertário dos anos 70 e 80

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

"Eu não sou bonita, sou pior". Atribui-se esta frase a uma personagem do grand-monde francês no século passado. Já Madonna, a maior estrela pop da atualidade, declara-se "uma feminista má". Entre as duas medeia a distância da sutileza estilística, mas uma proximidade de sentido que autorizaria uma releitura do tipo "não sou feminista, sou pior". Ou seja, a diva coloca-se além das atribuições de qualidade que se possam fazer de um ícone mundial. Ela se quer como pós-si-mesma, transidentitária.

É o que se reiterou frente a um público de um milhão e meio de pessoas na praia de Copacabana. O megashow "Celebration Tour" é uma espécie de caixa de Pandora que libera não as desgraças do mundo, mas os simulacros das liberações de costumes em meio século. Pandora é, aliás, o mito grego da criação da mulher por Zeus. A caixa pop simula transexualidade nas variações hermafroditas e andróginas em performances musicais, cênicas, dançantes, audiovisuais. Um prato cheio para o esconjuro conservador daqui. Mas é hipócrita o choque moral: entre nós, nada mais pornográfico do que extorquir dízimo de miseráveis.

A cantora americana Madonna durante o show realizado na praia de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro - Adriano Vizoni - 4.mai.24/Folhapress

No show, o escândalo envelheceu, a diva abre a mesma caixa há quarenta anos. A energia libertina perdeu o impulso libertário dos anos 70 e 80, democratizada na banalização das relações sociais. Gêneros antes disruptivos se institucionalizam em laços matrimoniais, próteses anatômicas, não-binarismos, assimilados pelo sistema. Cada pequeno-burguês é hoje virtualmente um metamorfo, o mutante mais humano que existe, apto a transformar-se em sua própria fantasia identitária. Disso tudo, Madonna, pós-pessoa-física de si mesma, é um ídolo sintético.

"Celebration" é transexualidade, o pós-sexo genital, conjugada no presente do passado recente. Tudo é "pós": pós-músicos (não há banda), pós-canto (playback), pós-coito (gestos vazios), homenagens póstumas. O ectoplasma ganha estatuto artístico. Por que atrai? Talvez porque a transexualidade, mesmo normalizada, seja hoje apreendida como base essencial de toda revolta.

Real é o efeito do hibridismo tecnológico de linguagens, que acende com canhões luminosos os simulacros libertinos. Um apoteótico karaokê de 280 toneladas de equipamentos. Reais são os efeitos econômicos. A mobilização do público aumenta o faturamento do turismo numa parte privilegiada da cidade.

Esquerdistas ou direitistas, governantes saltitam de júbilo centrista para justificar os 20 milhões, esbanjados no megaevento, que certamente negariam à prevenção climática. À distância, com seus filhos, mesmo em sua glacialidade aeróbica, Madonna deixa boa impressão: nada de bad girl, é uma riquíssima senhora a cavaleiro do velho extrativismo econômico-cultural americano.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.