Pena que, na torrente de livros em torno do centenário da Semana de Arte Moderna, não tenha saído nenhum sobre os nexos entre Mario e Oswald de Andrade. Eles brigaram feio. Mas a literatura de um fala à do outro, estão interconectadas. Juntas, compõem um mural da época.
Na arte, na política e na ficção, há pares cujas partes se entreolham. Convergem, divergem ou agem em paralelo. Um não seria o mesmo se não fosse o outro. Suas obras estelares compõem uma constelação. A seguir, algumas dessas duplas dialéticas.
Chico e Caetano. Um é épico e o outro, mítico. Chico fala da história de um povo. Suas canções fazem a crítica da crônica nacional —da ditadura às diretas, da miséria às milícias. Anseiam por um futuro que pulsa no passado: vai passar nessa avenida um samba popular. Caetano vê víboras do fundo do poço, mas o seu Brasil resplandece: uma criança sorridente, feia e morta estenda a mão, mas é lindo ver o leãozinho entrar no mar. Na hora da angústia coletiva e individual (anos 1960, agora), o épico e mítico se entrelaçam, Chico e Caetano cantam em uníssono contra a força bruta, auguram uma realidade menos mórbida.
Zorro e Tonto. Tese: Zorro é senhor. Antítese: Tonto é servo. Negação da negação, síntese: Tonto pergunta a Zorro "nós quem, cara-pálida?".
Davi e Golias. O filisteu que media 2,90 metros (Samuel 1: 17) estava vergado pelo peso de suas armas. O jovem pastor hebreu, escolado na proteção de suas ovelhas dos ataques de leões e ursos, acertou-lhe em cheio uma estilingada na testa. Davi saqueou vilas filisteias e decapitou Golias. Moral da história: vence (e não perdoa) aquele que maneja bem sua arma.
Marx e Engels. Como nunca houve "engelismo", Marx foi o corpo —na abrangência filosófica e na escrita. Mas Engels foi bem mais que sua sombra: um amigo e crítico de todas as horas. Inclusive no materialismo comezinho, o de lhe garantir a sobrevivência e a sobrevida.
O Gordo e o Magro. Acostumaram milhões de espectadores à pancadaria mecânica e humilhante dos filmes de pastelão. Talvez por isso tenham sido admirados por Samuel Beckett e Harold Pinter, poetas do sem sentido.
Quixote e Sancho Pança. O cavaleiro da triste figura era doido, mas talvez nem tanto quanto seu escudeiro, segundo Cervantes, "um homem de bem com pouco sal na moleira". Quem é ingênuo: o delirante que crê no que fantasia, ou o realista que acredita no patrão? Na aurora do século 17, a dobradinha inaugurou um gênero, o romance, que até hoje é povoado por personagens díspares, às turras com moinhos de vento.
Tom e Jerry. O gato, bicho de veludo e silêncio, virou um neurótico hiperativo, Tom. O rato, animal imundo, tornou-se um espertinho podre, Jerry. Assim se ensina a petizada a agir com má-fé e brutalidade.
Bernini e Borromini. Sem os dois arquitetos, que se odiavam, a Roma barroca não existiria. Ao falar do antípoda, Bernini disse: "Acho menos ruim ser um mau católico do que um bom herege". Isso porque Borromini contraía o espaço, reduzindo-o ao tamanho da sua alma, como na igreja de San Carlo. Já Bernini alargava-o, monumentalizava a retórica católica, como na Praça de São Pedro. Este era um homem do poder que se expande. Aquele, um ensimesmado em busca da sua salvação.
Lennon e McCartney. A parceria, que começou em 1962 e gerou 180 canções, terminou devido à politização de Lennon nas labaredas de 1968. Com a sua morte, e a da rebeldia, McCartney afundou-se
em tolas toadas pop. A inquietação de "Revolution 9" foi sepultada. Assim como 1968.
Lênin e Trótski. Como vencer a burguesia numa vaga revolucionária? Lênin sabia: com um partido de combate, o bolchevique. O povo russo sabia mais: com conselhos de trabalhadores, sovietes. Como derrotar a reação e manter o poder? Trótski sabia: militarizando o operariado e internacionalizando a revolução. Como construir o socialismo mantendo a democracia? Como a dupla pouco sabia, a casta burocrática se encastelou no partido. Seu líder, Stálin, pôde então superar Lênin e Trótski, matando os bolcheviques e sufocando os sovietes.
Judas e Jesus. Em "Três Versões de Judas", Borges reinterpretou João (1:10), que afirmou: "No mundo ele estava e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu". No conto, um teólogo argumenta que, ao se fazer carne, o Verbo rebaixou-se a ser o último dos homens, o traidor abjeto que delata em troca de 30 dinheiros. Foi como Judas que Deus desceu à Terra e —Hosana!— redimiu a humanidade.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.