Eis um livro difícil: “Formação e Desconstrução – Uma visita ao Museu da Ideologia Francesa” (Editora 34/ Duas Cidades, 334 págs.), de Paulo Eduardo Arantes. Pelo conhecimento prévio pressuposto, o sem-número de referências e pela sua ambição, não convém lê-lo no metrô.
Ele periodiza e repensa, a partir do fim da Era Sartre, o que chama, com maiúsculas, de Ideologia Francesa (Foucault, Lacan). Observa como ela se entroncou com sucedâneos da Escola de Frankfurt (Apel, Habermas) e da filosofia analítica (Rorty). E constata o seu triunfo quando adotada, com o rótulo de “Theory”, pelas universidades americanas.
Escritos no fim do século, seus dez ensaios percorrem o eixo filosófico Alemanha-França-Estados-Unidos. Partem das grotas do pós-estruturalismo e chegam aos umbrais da Zona Zizek, não sem antes mergulhar no magma dialético do Vulcão Kojève.
Como se não bastasse, a marcha pelo cipoal pós-modernista é iluminada por Hegel, tema de três ensaios. Felizmente, o posfácio, do italiano Giovanni Zanotti, propõe um roteiro, realça a argúcia e alcance do projeto de Arantes.
O livro está a anos-luz de ser mera análise de textos, como manda a boa norma dos departamentos de filosofia de ultramar —por empenhados que sejam, como o da USP. O que ele de fato faz é filosofar: ensaiar, criticar, vislumbrar, criar imagens para o fim de linha contemporâneo.
“Formação e Desconstrução” mostra como o pensamento ocidental progressivamente deixou de expressar algo que não fosse a sua forma de expressão: texto, discurso, fraseado. São papers e mais papers dedicados a reformar e deformar filosofias que espanaram, giram em falso.
A máquina universitária globalizada fundiu modos de pensar até então antípodas. Foi pródiga em produzir colóquios, gestos, mímicas sem referência no real —caso do manifesto costurado por Habermas (teuto-teoria crítica) e Derrida (franco-descontrucionismo).
É só então, sem traço de provincianismo, que Arantes foca nossa condição colonial. Sustenta que o farfalhar rebarbativo das metrópoles está ligado à logorreia sem assunto das periferias. No plano intelectual, a lábia na calota norte corresponde à náusea nos tristes trópicos —e vice-versa.
Por vias transversas, pois, a velha figura da formação nacional ressurge, diz a verdade da desconstrução: não é que a periferias progridem, e sim que as metrópoles regridem. Lá e cá as ideias estão fora do lugar.
Daí, para Arantes, a pertinência da linhagem uspiana —de Antonio Candido a Roberto Schwarz— que enriqueceu o conceito de formação. A sua dialética abarca a crise contemporânea, a degradação provocada pelo capitalismo tanto nas ex-cortes como nas ex-colônias.
A prosa espiralada e centrífuga de Arantes tem algo de oral: precisa tempo para se espraiar. E como “Formação e Desconstrução” foi concebido a partir de partes independentes, nem sempre o escopo do livro é imediatamente perceptível. Então, fica aqui uma sugestão de tabaréu: ler antes, como se fosse prefácio, o posfácio de Zanotti.
Isso porque seria uma perda abandonar o livro. Ele é pertinente, evidencia um aspecto da inserção brasileira na cena mundializada, põe em crise nossa suposta marginalidade. E porque o seu autor é uma avis rara na nossa bem bem-comportada intelectualidade: um radical.
Sua obra —espalhada por palestras, arguições, aulas, lives, seminários— fundamenta e prega a insurgência. Não aceita a desconversa dos moedeiros do progresso. Não tolera o escambo entre aniquilamento e exploração, desde que produzida com o proverbial respeito às instituições. Mobiliza a liberdade de pensar e agir.
Muito antes da peste, de Bolsonaro e do avanço das trevas, Arantes anteviu aonde o desemprego estrutural e a destruição do meio ambiente nos levariam. Afirmou que, quando “o país do futuro parece não ter mais futuro algum, somos apontados, para mal ou para bem, como o futuro do mundo”.
Ele ressalta a energia destrutiva do presente. Descrê de sujeitos históricos universais, do proletariado industrial como agente de transformação, de partidos oriundos da tradição marxista. Tampouco cede à onda identitária. Não é nostálgico, novidadeiro ou neobolchevique.
Aposta no potencial e na luta dos oprimidos, na sua negatividade, está a seu lado em atos e palavras. Mais: investe na ideia de revolução, na chance —cada vez mais urgente— da espécie e o mundo se salvarem. Entre tanta gente prostrada, sua rebeldia incomoda.
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