Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Enterrar os mortos para viver em paz

Antígona disse que prantear e sepultar o irmão importam mais que a política e o poder

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As 33 tragédias que a Grécia clássica nos legou lidam com uma oposição estranha. De um lado, os laços familiares são estendidos ao extremo, gerando horror: Édipo se casa com a própria mãe, Jocasta; tem filhos-irmãos com ela. O desejo enseja excesso, incesto.

Noutras situações, os laços de parentesco são rompidos com rancor tão ou mais assombroso: Menelau sacrifica a filha, Ifigênia; Clitemnestra assassina o marido em desagravo; para vingar o pai, Orestes trucida a mãe. A família, suave ninho da vida, é arena de mortes sangrentas, em série.

As tragédias atraem público sete séculos depois de criadas. Não só devido aos diálogos de reis, princesas e heróis. Nem apenas porque os versos ditos pelo Coro, que julga os atos dos aristocratas no palco, sejam sábios. 

Qual o segredo de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes?

Ilustração
Bruna Barros/Folhapress

Para Aristóteles, o primeiro a dar uma resposta, tragédias propiciam a ignição de piedade e terror, catarse. A análise mais conhecida ainda é a de Freud: os heróis trágicos, em especial Édipo, encarnam pulsões que destroçam a alma humana.

É “Antígona”, contudo, que nos últimos tempos virou alvo predileto da crítica. Ela é uma heroína de traços atuais: moça, feminista, rebelde, mártir. Para trazê-la ao presente, a filósofa americana Judith Butler emprega questões “queer” e de gênero.

O esloveno Slavoj Žižek, outro filósofo, juntou política marxista e cinema pop para reescrever “Antígona”, dando-lhe um ar leviano e tolo. O mesmo procedimento, mas a sério, foi empregado por Jean Anouilh, que situou a peça de Sófocles na ocupação nazista da França.

“Antígona” é também a peça que serviu de fulcro para a interpretação mais duradoura —para não dizer definitiva— das tragédias gregas, a de Hegel. A peça e a crítica iluminam o blecaute ocorrido, na quarta-feira passada, no triângulo Curitiba-Brasília-São Bernardo.

Segundo Hegel, a estranha oposição entre hipervalorização e ultrarrepúdio dos laços familiares se desdobra em outras tensões: entre os costumes e a lei; entre a família e a cidade; entre a religião e a política. Tais tensões configurariam a Grécia antiga —e o Brasil de hoje?

Antígona é filha de Jocasta e Édipo. Quando o pai fura os olhos e abandona Tebas, ela o acompanha. Seus irmãos, Etéocles e Polinice, pleiteiam o trono. Decidem que cada um reinará por um ano, alternadamente. Não dá certo. Guerreiam e matam um ao outro.

Creonte assume o poder. Decreta que Etéocles seja enterrado com honras. Já Polinice, tido por traidor por ter se aliado a estrangeiros, restará insepulto, pasto de cães e abutres. Antígona teima em enterrar o irmão, apesar da ameaça de Creonte de matá-la a pedradas.

Para os gregos, os mortos só se tornavam imortais se, inviolados, descessem ao reino subterrâneo. Se não, suas almas vagariam pelo mundo, assombrariam os vivos para sempre. Creonte diz que a ele, chefe de Estado, cabe o direito de proibir as homenagens fúnebres e o luto de Antígona.

O Coro dos cidadãos lhe responde (na tradução de Millôr Fernandes): “O direito de respeitar os mortos é mais sagrado”. Creonte insiste nos argumentos hoje repetidos no Planalto: “Havia uma guerra e Polinice escolheu o lado errado”; “Antígona é louca”; “Apenas cumpro a lei”.

Antígona retorque: “Tua lei é um capricho ocasional”. Por acreditar na imortalidade, ela diz: “Serei amada para sempre pelos que amei e junto deles dormirei em paz. Devo respeitar mais os mortos do que os vivos, pois é com eles que vou morar mais tempo”.

Antígona não tem nada a ver com o PT. Seu argumento é afetivo: quer prantear o irmão. A ordem de Creonte não é limpa nem legítima. É a expressão da vontade mesquinha de vencer pela segunda vez quem está exangue —é buscar humilhá-lo, aniquilá-lo para sempre.

Não se constrói uma Tebas justa assim. Mas outra vez os poderes constituídos politizaram a morte do irmão de um prisioneiro do Estado. Para espezinhá-lo, autoridades constituídas recorreram a um leguleio execrável, a toda sorte de covardias. Creonte e sua corja cumpriam o dever.

Num artigo publicado na quinta-feira pela London Review of Books, acerca da eleição de Bolsonaro, Perry Anderson disse de Dias Toffoli: “O ex-garoto de recados legais do PT é, muito provavelmente, a figura mais desprezível do cenário político atual”.

O historiador inglês escreveu sua sentença antes de o presidente do Supremo proibir Lula de ir enterro do irmão. Sófocles acharia que o “muito provavelmente” não tem mais razão de ser.

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